11 de março de 2014

The Truman Show: Na realidade ficcionada, a ficção real

Em termos temáticos, a ficção científica cinematográfica da segunda metade dos anos 90 surge dominada por temáticas que poderíamos considerar como típicas a Philip K. Dick pelo carácter basilar que assumem na sua obra literária: os simulacros, a irrealidade do real, a possível - paranóica - artificialidade do mundo que nos rodeia, e que dia após dia decidimos designar por "realidade". Não que tenha havido adaptações directas dos seus textos durante este período - apenas o Screamers que Christian Duguay realizou em 1995 a partir do conto Second Variety; mas para quem tivesse as leituras de Philip K. Dick em dia teria decerto sido difícil, para não dizer impossível, olhar para filmes como Dark City (1998) e The Matrix (1999) sem pensar em algumas das imagens que conjurou com mestria nas suas descrições intensas, plenas de dúvida e de paranóia. Mas nenhum destes excelentes filmes (e, atrevo-me, muito poucas das restantes adaptações) conseguiu capturar tão bem a noção de irrealidade do real tão transversal à sua obra como The Truman Show, filme de 1998 realizado por Peter Weir (The Dead Poets Society) e escrito por Andrew Niccol (Gattaca), capturando na perfeição uma premissa tão cara a Philip K. Dick: a ideia de um homem comum, sem nada de extraordinário, a aperceber-se de que a realidade do seu dia-a-dia mais não era do que um elaborado jogo de espelhos desenvolvido ao mais ínfimo detalhe para um propósito que lhe era estranho.

E esse homem é Truman Burbank, numa interpretação magnífica - e, à época, surpreendente - de Jim Carrey. Para todos os efeitos, Truman é um homem comum, com uma vida banal na pacata vila de Seahaven: tem trinta anos, é casado com uma bela mulher, tem uma casa com um quintal típico e vizinhos amistosos, e um trabalho sossegado numa companhia de seguros. O que Truman não sabe é que nada do que o rodeia, ou nada do que viveu até ali foi ou é real: é tudo uma vasta encenação para o programa de televisão em directo mais visto em todo o mundo: "The Truman Show".


A chave do sucesso de "The Truman Show" (o programa de televisão) reside justamente no total desconhecimento de Truman Burbank da irrealidade que o rodeia: fruto de uma gravidez indesejada, foi adoptado por uma empresa de entretenimento que o tornaram numa estrela televisiva involuntária, acompanhada pelos olhos vorazes e anónimos de todo o mundo desde o útero até à idade adulta. Todo o mundo o segue 24 horas por dia: enquanto dorme, enquanto toma as suas refeições, enquanto conduz para o trabalho, enquanto está no escritório - um programa que custa milhões, que gera milhões (através de um product placement exaustivo) e que, em última análise, é visto por milhões. Truman não tem um segundo de solidão: onde quer que vá, está acompanhado pelo olhar atento de inúmeros telespectadores em todo o mundo.


Em boa medida, Weir e Niccol construíram uma sátira fascinante à cultura de reality TV que se começava a adivinhar no final da década de 90, e que viria a dominar o entretenimento televisivo a partir da viragem do milénio. Mas a analogia estabelecida acaba por se revelar interessante sobretudo pela antítese. Os reality shows que se tornaram em fenómenos de audiências a partir do ano 2000 recorreram de forma invariável a voluntários que aceitaram expor as suas vidas, e que interpretaram os seus próprios papéis num dia-a-dia fabricado para alimentar o voyeurismo das massas televisivas - seja no cenário artificial de um Big Brother ou num daqueles programas em que a equipa de filmagens se instala nas habitações dos próprios concorrentes. Trumam, porém, não é um voluntário, e o seu desconhecimento da artificialidade do real torna-o imune a quaisquer efeitos de Hawthorne: no meio da vasta encenação que orbita em seu redor, Truman é profundamente genuíno (o seu nome, e a ironia que encerra, não são fruto de acaso). E é essa genuinidade que faz do seu programa o espectáculo televisivo mais visto em todo o mundo. Há um momento em que o criador de "The Truman Show", Christof (Ed Harris) define essa genuinidade com uma deixa lapidar: "There's nothing fake about Truman himself. No scripts, no cue cards. It isn't always Shakespeare, but it's genuine. It's a life." Um mantra quase perfeito para a televisão contemporânea, no seu recorrente simulacro do real.


Truman Burbank manifesta a mesma genuinidade na sua lenta mas progressiva jornada de descoberta da irrealidade do real, numa evocação perfeita a Philip K. Dick, cujos homens comuns que vivem nas suas histórias descobrem o outro lado do espelho mais por acaso do que por intenção (recordemos Ed Fletcher em The Adjustment Team, e no que lhe acontece quando não chega ao emprego à hora prevista). Tudo começa com um projector que se solta do domo celestial para lhe colocar uma questão impossível; uma transmissão rádio que parece segui-lo no seu caminho para o escritório; um padrão constante no movimento de pessoas que começa a perceber na aparente aleatoriedade dos seus conterrâneos. A visão fugaz mas reveladora dos bastidores da realidade, quando quebra propositadamente a sua rotina diária, estabelecida com o rigor matemático de uma grelha de programação.


Weir e Niccol desenvolvem esta sátira com mestria, situando The Truman Show tanto no interior de "The Truman Show" como no exterior: na produção, nos breves momentos em que vemos Sylvia, no acompanhar do programa por inúmeras pessoas de várias origens, unidas pelo interesse comum pela vida de Truman Burbank. Como espectadores do filme e do programa dentro do filme, acompanhamos as peripécias da equipa de Christof no seu esforço hercúleo para fazer Truman regressar aos eixos - enquanto Truman, no seu simulacro, desenvolve um esforço simétrico para descarrilar e para iludir o que quer que se esteja a passar.


Mas se The Truman Show consegue elevar-se tanto no contexto das suas ambições narrativas como enquanto sátira, isso deve-se em larga medida ao desempenho superlativo de Jim Carrey, que transporta em ombros todas as ambições do filme (sem desprimor para o restante elenco: Ed Harris está soberbo como Christof). Até então associado a um registo cómico muito próprio, Carrey surpreendeu ao combinar a sua veia cómica (presente sobretudo na primeira metade do filme) com um desempenho de uma intensidade dramática ímpar; e estes dois elementos, algo dissonantes entre si, vão combinar-se para investir o seu Truman Burbank de uma grande verosimilhança, capaz de tornar plausível o cenário tão improvável em que se encontra. O final, a todos os níveis espantoso, é prova irrefutável da capacidade de Carrey de metamorfosear a sua comédia numa interpretação dramática e pungente.


Olhando para The Truman Show hoje, em pleno 2014, será talvez possível repararmos que a premissa de Andrew Niccol se revelou, a espaços, ingénua - o público televisivo, mais massivo do que nunca, assumiu-se voyeur, mas está perfeitamente disposto a assumir como real uma realidade que sabe ser artificial. Mas se situarmos este filme no seu tempo, em 1998, deparamo-nos com uma obra visionária como a ficção científica cinematográfica conheceu poucas nas últimas duas décadas: capaz de adivinhar o rumo que um elemento social específico - o entretenimento - tomaria nos anos subsequentes, e de o definir através de uma sátira inteligente e, a espaços, abrasiva. 8.5/10

The Truman Show (1998)
Realizado por Peter Weir
Argumento de Andrew Niccol
Com Jim Carrey, Ed Harris, Laura Linney, Natascha McElhone, Noah Emmerich, Holland Taylor e Brian Delate
103 minutos

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