12 de fevereiro de 2013

A Clockwork Orange: a adaptação, a controvérsia, o legado

A Clockwork Orange, o controverso livro de Anthony Burgess que hoje é um clássico da literatura, conheceu várias adaptações para diferentes formatos desde a sua publicação em 1962. Diria, contudo, que nenhuma dessas adaptações terá sido tão controversa, bem sucedida e icónica como o filme que Stanley Kubrick  produziu e realizou em 1971 - ao ponto de, para quem lê o livro após ter visto o filme, poder ser especialmente difícil dissociar as duas obras. E isso acontece por três motivos: pela poderosa componente visual do filme, pela qualidade superlativa das interpretações e pela fidelidade da adaptação.

A carreira cinematográfica de Kubrick ficou marcada não só pelo seu perfeccionismo obsessivo mas também pelas extraordinárias componentes visual e sonora dos seus filmes - 2001: A Space Odyssey será porventura o exemplo mais evidente, mas filmes como ShiningBarry Lyndon, Dr. Strangelove, Full Metal Jacket ou mesmo Eyes Wide Shut deixaram no seu legado um sem-número de motivos e de imagens de grande força, que perduram no imaginário do realizador e que são identificadas com facilidade pela maioria dos apreciadores de cinema. A Clockwork Orange não é excepção: é impossível esquecer a imagem de Alex, o vilão-tornado-vítima, esguio no seu fato branco e chapéu de coco preto; como é impossível esquecer o Korova Milk Bar; as decorações surrealistas na forma e na cor, com motivos explícitos; a violência coreografada; o som sinistro que acompanha Alex em vários momento da narrativa, por contraste com a Nona Sinfonia de Beethoven. Kubrick capturou o espírito do livro de Burgess na perfeição, e recriou na película aquela distopia tão estranha e perturbadora, lúgubre apesar das cores eufóricas. 

Entre a solidez das interpretações destaca-se Malcolm McDowell com um desempenho superlativo, entrando de forma extremamente profunda na sua personagem, ao ponto de, nos 136 minutos que dura o filme, McDowell ser, de facto, Alex. E se Alex se tornou tão icónico isso deve-se em larga medida à forma como o actor encarnou a personagem, como lhe deu uma vida para lá da sua invulgar caracterização. Na primeira parte do filme, oscila na perfeição entre a mais fria indiferença e a mais extrema violência e voluptuosa luxúria para, na segunda parte, o seu entusiasmo forçado para com o condicionamento a que aceitou ser submetido dar lugar a um desespero tão profundo que se torna difícil não sentir compaixão daquela personagem destruída - mesmo conhecendo muito bem todas as atrocidades que cometeu. Num filme com quatro nomeações para os Óscares, é incompreensível como a fabulosa interpretação de McDowell escapou à distinção. 

Em termos de adaptação, o filme de Kubrick seguiu com fidelidade o livro de Burgess. É certo que há várias diferenças, como é inevitável que aconteça em qualquer projecto deste tipo, mas em termos gerais quem lê e vê A Clockwork Orange cedo repara na forma como Kubrick passou o texto para a película preservando aquilo que o tornou único enquanto lhe conferiu uma identidade própria. Se pecou, terá sido por não se atrever a ir tão longe como Burgess foi nas páginas do livro - o Alex do filme é mais velho que o Alex do livro, e algumas das cenas mais "fortes" que filmou são incomparavelmente mais brutais nas páginas. Há, contudo, um desvio notável que se tornou célebre: o filme omite por completo o último capítulo do livro, que pode dar todo um novo significado à história de Alex. Kubrick afirmou em tempos que o argumento baseou-se na edição americana de A Clockwork Orange, que omite o último capítulo; mas também se diz que o realizador considerou o final de Burgess demasiado optimista. 

Fiel ao polémico livro que adaptou para o cinema, A Clockwork Orange foi desde o primeiro momento um filme controverso - nos Estados Unidos, obteve uma classificação "X" (mais tarde revista para "R" após o realizador re-editar algumas cenas), e no Reino Unido os seus conteúdos sexuais e violentos foram considerados "extremos" e o filme foi retirado de exibição por decisão do próprio realizador, tendo apenas regressado aos cinemas britânicos após a sua morte em 1999. Apesar da polémica, A Clockwork Orange tornou-se rapidamente num marco na carreira de Stanley Kubrick e num filme de culto. Foi um dos poucos filmes de ficção científica nomeados para algumas das principais categorias dos Óscares da Academia (no caso, Melhor Filme e Melhor Realizador, para além de Melhor Edição e Melhor Argumento Adaptado). Hoje um clássico incontornável, as imagens de A Clockwork Orange permanecem vivas e relevantes no imaginário popular - o que, em si, será porventura a mais relevante das distinções. 9.1/10


A Clockwork Orange (1971)
Realizado por Stanley Kubrick
Com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Adrienne Corri, Warren Clarke, Carl Duering
136 minutos

Sem comentários: