7 de março de 2014

Tangled Up In Blue: Noir galáctico

Há prequelas que se revelam mais interessantes quando são lidas como sequelas. O paradoxo será apenas aparente: há histórias que se revelam numa leitura mais estimulante quando enquadradas num determinado contexto e quando situadas num universo ficcional concreto, mesmo quando em termos cronológicos antecedem o texto que apresentou o contexto e o universo ficcional - seja por introduzirem elementos novos em enredos já estabelecidos, possibilitando novas interpretações de acontecimentos e plot points, assim como novas perspectivas sobre algumas personagens. Poderia utilizar esta introdução para falar dos trabalhos de Tolkien na Terra Média, entre The Silmarillion e - sim - The Hobbit, mas as leituras de hoje situam-se no território da ficção científica. Mais precisamente, na vasta space opera que Joan D. Vinge escreveu entre os anos 80 e 90, com o premiado The Snow Queen e com as suas duas sequelas directas, World's End e The Summer Queen. A prequela, essa, data de 2000, e intitula-se Tangled Up in Blue.

Leitores familiarizados com o universo de The Snow Queen/The Summer Queen terão decerto reparado na forma como a história algo contida de Moon e Arienrhod no primeiro livro acabou por dar lugar a um épico de escala galáctica no último (World's End é mais uma história curta de ligação entre os dois volumes principais da série do que uma sequela propriamente dita). De certa forma, Tangled Up In Blue surpreende por abandonar a fasquia elevada de The Summer Queen para regressar a uma história curta, concisa e muito circunscrita. E surpreende ainda mais por deixar de lado as formas e as convenções da space opera para dar forma a um thriller policial com claras influências noir

A história, essa, antecede um pouco os acontecimentos de The Snow Queen, e centra-se não na demanda de Moon nem nas acções de Arienrhod, mas sim no trabalho das forças policiais da Hegemonia na cidade de Carbuncle, em Tiamat. Por numeroso que o contingente de Carbuncle seja, a burocracia e a corrupção que grassa na cidade impede qualquer investigação e qualquer acção policial digna desse nome. Por isso, um grupo de polícias (blues) no fundo da hierarquia decidiu organizar-se numa milícia de vigilantes, quebrando de noite a lei que mantém durante o dia numa tentativa de restabelecer alguma justiça. Um raid a um armazém repleto de tecnologia proibida contrabandeada por Arienrhod, porém, acaba por correr da pior forma possível, e apenas Nyx LaisTree, um jovem polícia de New Haven, sobrevive para contar a história do que se passou naquela noite - uma história de que o próprio não se consegue lembrar. No seu esforço para recuperar a memória dos acontecimentos no armazém e dar à morte dos seus companheiros um módico de justiça, irá encontrar aliados improváveis em BZ Gundhalinu, um jovem e rígido sargento oriundo da sociedade estratificada de Karemough, e Devony Seaworth, uma nativa de Tiamat que não é exactamente quem aparenta ser (e tal constatação não se refere apenas à imagem fictícia que projecta). E irá tropeçar em algumas pontas soltas de organizações e conspirações com maiores dimensões e mais poder do que alguma vez imaginou.

Tangled Up In Blue lê-se na perfeição sem conhecimento prévio das outras obras da série - na prática, lê-se como o policial noir que verdadeiramente é, com uma trama elaborada em redor de um mistério, e com uma atmosfera inspirada talvez noutras obras (e noutro género) e encaixada com naturalidade no submundo de Carbuncle, e da própria Hegemonia. Dito isto, e regressando ao início do texto, um conhecimento prévio das restantes obras, porém, permite fazer algumas leituras e reinterpretações que dão algum volume adicional à trama - e se é certo que a presença de personagens como Gundhalinu e Mundilfoere dará à narrativa alguma segurança em demasia (o primeiro é uma das personagens secundárias mais importantes de The Snow Queen, e torna-se protagonista a partir de World's End; a segunda é uma jogadora relevante no denso emaranhado de conspirações que Vinge tece em The Summer Queen), nem por isso deixa de ser interessante ver tais personagens com outros olhos, e repensar toda a sua evolução. Tangled Up In Blue consegue ainda lançar uma outra luz sobre Arienrhod e os seus planos, apesar de a Rainha de Gelo ser apenas uma personagem secundária (a sua sombra faz-se sempre sentir), e num ou outro detalhe consegue surpreender mesmo os leitores mais atentos da restante saga.

Não será, nem de perto nem de longe, um dos melhores livros de Joan D. Vinge - não tem o puro sense of wonder de The Snow Queen, o arrojo narrativo de World's End, a trama intricada de The Snow Queen. Mas constitui um novo episódio dentro deste universo ficcional fascinante, o que por si só será sempre merecedor de destaque; e quem tiver lido e apreciado os restantes livros encontrará em Tangled Up In Blue uma leitura sólida e interessante, bem escrita e desenvolvida dentro das suas convenções mais ou menos híbridas. Quem quiser entrar neste mundo, deverá optar pelo primeiro romance de Vinge; mas quem já conhecer, que se sente e faça de conta que está em casa. Para todos os efeitos, estará.   

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