21 de março de 2014

Do Androids Dream of Electric Sheep?: Empatia artificial

Quem tiver visto Blade Runner, o filme de 1982 realizado por Ridley Scott que adaptou para o grande ecrã o romance Do Androids Dream of Electric Sheep?, decerto estará recordado do momentos iniciais, com a visão panorâmica de uma Los Angeles futurista cuja escuridão é cortada com violência pelas explosões das chaminés - tudo isto ao som da magnífica banda sonora de Vangelis. A adaptação de Scott ao romance de Philip K. Dick é, para todos os efeitos, bastante livre (passe o eufemismo); quaisquer duvidas sobre esse ponto cedo serão dissipadas com a leitura do primeiro capítulo de Do Androids Dream of Electric Sheep? (1982): Longe da visão majestosa de uma Los Angeles sombria e devastada pela guerra e pelo fallout, o romance clássico de Dick abre com algo tão banal como uma discussão conjugal entre o protagonista, Rick Deckard, e a sua mulher, Iran. 

A cidade, note-se, continua presente - e as descrições de Dick são quase tão evocativas como as imagens de Scott, conjurando na perfeição a Los Angeles devastada de um futuro próximo após a derradeira Guerra Mundial - um futuro no qual os boletins meteorológicos incluem previsões de fallout e no qual a malha urbana, outrora sobrepovoada, cede cada vez mais espaço ao vazio, à ausência de habitantes, desaparecidos na voragem da guerra ou - no caso daqueles que têm tal possibilidade - emigrados para as colónias extra-terrestres. Deckard, porém, não desapareceu ou emigrou, e continua a desempenhar a sua função de bounty hunter para as autoridades locais, caçando e eliminando quaisquer andróides que tentem regressar à Terra. E, na impossibilidade de ter um animal de estimação vivo - a guerra extinguiu a maioria da fauna terrestre -, mantém uma ovelha eléctrica, simulacro perfeito do animal real, no seu terraço.

A importância da ovelha eléctrica não é de somenos, e funciona como metáfora perfeita do grande tema de Do Androids Dream of Electric Sheep?: a empatia enquanto atributo intrinsecamente humano. O primeiro capítulo, com a discussão conjugal em torno do Penfield mood organ, um aparelho para induzir estados emocionais pré-configurados nos seus utilizadores (do optimismo para com as possibilidades da vida ao entusiasmo para com o trabalho diário - até aos estados de depressão e despero que Iran aprende a manipular com a mesma atitude passivo-agressiva que encara a relação com Deckard), introduz esta ideia de forma cristalina. Deckard e Iran, como quase todos aqueles que permanecem na Terra, vivem em isolamento e em desagregação, alimentados pelas emoções artificiais dos mood organs, pelos sentimentos de pertença artificiais da religião de Wilbur Mercer ou do niilismo por via da comédia do programa televisivo "Buster Friendly and His Friendly Friends". Um animal vivo, luxo derradeiro numa época na qual a fauna terrestre se encontra praticamente extinta, representa mais do que um símbolo de estatuto social: representa uma criatura com a qual criar laços. Na ausência do animal real, que cobiça, Deckard procura recriar esses laços na sua ovelha mecânica, simulacro tão perfeito como artificial do animal que representa. E é aqui que entram os andróides Nexus-6, na aparência e na inteligência indistinguíveis dos seres humanos, que Deckard caça por profissão. 

É por este prirsma - na destruição do artificial para obter algo real, enquanto mantém a empatia com o artificial - que Philip K. Dick problematiza a empatia e, em última análise, aquilo que define um ser humano. Outros motivos recorrentes na sua obra surgem também em Do Androids Dream of Electric Sheep?, como a dúvida perante a irrealidade do real ou a fragmentação identitária - ambos, porém, surgem como temas auxiliares na exploração filosófica do que significa ser humano - e se tal conceito estará restrito aos humanos de carne e osso, ou se será extensível aos simulacros que a Humanidade concebeu. Que Philip K. Dick tenha conseguido desenvolver este tema de forma tão cativante numa trama intensa, quase noir, oscilando entre os momentos de acção bem ritmados e passagens introspectivas fascinantes atesta em definitivo os seus atributos enquanto ficcionista e a sua capacidade abordar em termos filosóficos temas que outros autores apenas aflorariam com brevidade (convenhamos: uma história simples sobre um caçador de andróides ilegais já seria, em si, bastante apelativa). Do Androids Dream of Electric Sheep? é um clássico incontestável da ficção científica, e um exemplo perfeito da sua obra: complexo, filosófico e multifacetado. 

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