3 de janeiro de 2014

American Gods: Entre o mito e a crença

Comecemos pelo final e pelo óbvio: American Gods estará sem dúvida entre os melhores livros de fantasia deste milénio - isto, como é bom de ver, partindo do princípio de descrever este romance notável de Neil Gaiman a um livro de fantasia não se torna demasiado redutor. A fantasia está lá, de facto, e perpassa todo o texto das primeiras páginas ao epílogo; mas está também uma carga mitológica única e trabalhada de forma magistral; uma vasta road trip pela América conhecida e oculta; prestidigitação e con tricks q.b.; e um vasto mosaico de enredos secundários e de histórias curtas que, seguindo de forma mais ou menos lateral à história que a prosa excepcional de Gaiman vai contando, emprestam a todo aquele mundo uma maior textura, mais verosimilhança e uma tremenda riqueza conceptual.

Concluído o final, regressemos ao início - e no início, como é bom de ver, temos a premissa na qual a narrativa multifacetada de American Gods assenta. Recuperando alguns elementos conceptuais do seu magnum opus na banda desenhada, The Sandman (e talvez também algumas inspirações no universo ficcional de Terry Pratchett, com o qual colaborou no início da sua carreira em Good Omens), Gaiman pega na ideia de que a existência e o poder dos deuses dependem da crença - e dos sacrifícios, já agora - dos seus fiéis e combina-a com a construção multi-étnica americana, feita ao longo de milhares de anos através de vagas migratórias originárias em diversos pontos do planeta, mais ou menos distantes (e mais ou menos conhecidas, quando não mesmo material levantado directamente de lendas e mitos). Os povos que atravessaram terra e mar para chegar ao vasto continente americano teriam levado consigo as suas crenças - e, com elas, os seus deuses, recolocados numa terra estranha e algo hostil. Nessa América mitológica seria assim possível encontrar Odin e Loki, Anúbis e Tot, Crernobog e Bielobog, Ostara e Morrigan, Anansi e Johnny Appleseed, entre inúmeros outros - em tempos poderosos, alimentados pelas crenças dos seus povos, mas no mundo contemporâneo enfraquecidos pelo esquecimento e pela chegada dos deuses da vida moderna - das divindades da tecnologia, da comunicação, das drogas. Gaiman recorre ao expediente clássico do mundo secundário que coexiste com o nosso, e sobre o nosso - mas utiliza tal ideia com parcimónia, em um ou dois plot points fulcrais. Os deuses deslocados continuam a existir nas sombras, movimentando-se anónimos entre uma população mista que nem sequer os reconhece. 

Em termos práticos, o que Gaiman tece é uma análise à sociedade ocidental contemporânea, que terá como Meca cultural e espiritual - se podemos ainda falar em termos espirituais - na América. Mas em momento algum tal análise, ou, se preferirmos, crítica, se reveste do moralismo habitual neste tipo de premissas (e seria tão fácil diabolizar o consumismo, e ser aplaudido por isso). O autor deixa a história respirar, retira algumas conclusões, e deixa ao leitor a tarefa de retirar as suas - e, pelo caminho, cria uma mitologia fascinante para uma terra icónica e desprovida de deuses, explorando uma América simultaneamente tão familiar e tão desconhecida deste lado do Ocidente. 

Pelo meio, temos Shadow, o protagonista - um homem grande, pacato e silencioso, com um curioso talento para prestidigitação, que nas primeiras páginas do livro se encontra na recta final dos seus três anos na prisão - merecidos, diga-se de passagem. Homem de poucas ambições, Shadow quer apenas deixar a prisão para trás e regressar para junto de Laura, a sua mulher, que durante aqueles três longos anos esperou com (aparente) paciência pela libertação do seu companheiro. Um violento acidente de automóvel, porém, ceifa a vida de Laura, as possibilidades de novo emprego para Shadow, e precipita a sua saída da prisão - para o atirar para um homem enigmático, que se apresenta como Mr. Wednesday e que sabe mais sobre Shadow do que ele poderia pensar que alguém soubesse. Wednesday oferece a Shadow um emprego: ser seu guarda-costas e acompanhá-lo durante as suas demandas. Sem alternativas, o ex-recluso aceita a oferta - longe de imaginar que esta o levará numa longa aventura por uma América ao mesmo tempo familiar e estranha nas suas gentes, nos seus marcos e nos seus ícones. No decurso desta road trip, Shadow irá conviver com Wednesday e os seus contactos singulares, tanto amigos como inimigos (e por vezes, nem uma coisa nem outra), viverá em lugares tão díspares como a pacata cidade do Cairo, no estado do Illinois, ou a misteriosa vila de Lakeside, e visitará sítios tão diferentes como a Montanha Lookout, o centro imaginário da América no Kansas ou a House on the Rock. E será encaminhado para o centro da tempestade anunciada desde as primeiras páginas, para o meio de um conflito inevitável e de proporções míticas, que promete não deixar nada como dantes. Na verdade, um dos aspectos mais fascinantes em American Gods é acompanhar o crescimento pessoal e emocional de Shadow ao longo do seu envolvimento cada vez mais profundo com os assuntos dos deuses, descobrindo os seus segredos, os seus ritos e as suas agendas próprias.

Existem várias versões de American Gods. A original arrecadou praticamente todos os prémios que um livro de género poderia conquistar na categoria de "Best Novel": o Hugo, o Nébula, o Bram Stoker, o Locus, e mais alguns. Aquela que li, comemorativa dos dez anos da publicação do livro, é a versão alargada designada apenas como a preferida do autor - inclui, de acordo com o próprio, cerca de 12000 palavras do que a original. Onde estão esses milhares de palavras, não saberei dizer - mas que esta versão longa proporciona uma leitura a todos os níveis fascinante, disso não há dúvida. Em American Gods não encontramos acção frenética, batalhas longas e descritas ao pormenor, e vastos lugares imaginados - encontra-se, sim uma narrativa notável na sua ambição, vasta e dispersa no seu alcance; e que na sua dispersão nunca perde de vista a premissa que a sustenta, e o enredo que a move - devagar e inexoravelmente, e com uma conclusão extraordinária. 


2 comentários:

Anónimo disse...

Essa também foi a versão que eu li e concordo plenamente. De Neil Gaiman só tinha lido Good Omens porque já era fã de Terry Pratchett. Depois de ler Stardust e Neverwhere descobri American Gods e ele tornou-se um dos meus escritores favoritos.

João Campos disse...

Ando para ler o Good Omens há algum tempo - do Gaiman apenas li os primeiros álbuns de The Sandman, e a escrita já me tinha impressionado. American Gods é mesmo um texto notável. A ver se leio outros do Gaiman em breve.