20 de dezembro de 2013

The Stars My Destination: Antecipação e disrupção

No ano passado, falei aqui sobre The Stars My Destination, romance de Alfred Bester publicado em 1954 (também com o título Tiger! Tiger!) para se vir a tornar num clássico incontestado da ficção científica; dada a efeméride do centenário do nascimento do autor, julgo não ser despropositado regressar a este livro, sem dúvida merecedor de uma releitura atenta*. Na análise original, coloquei em evidência a temática de vingança central a todo o enredo que Bester tece com mestria: uma espécie de Conde de Monte Cristo da era espacial, num futuro hipotético no qual a Humanidade já explorou e colonizou o Sistema Solar. A trama, essa, ter-lhe-á surgido a partir da história, aparentemente verídica, de Poon Lim - o marinheiro chinês que passou meses à deriva no Atlântico Sul durante a Segunda Guerra Mundial, dado o receio de que o barco salva-vidas fosse um isco para torpedos alemães. O protagonista de Bester, Gulliver "Gully" Foyle, é um homem comum, um mecânico de terceira classe a bordo da nave espacial "Nomad" - não tem quaisquer ambições, interesses intelectuais ou estímulos naturais. E é este homem comum que, durante seis meses, estabelece uma intricada rotina de sobrevivência após a "Nomad" ser atingida e danificada com gravidade algures entre Marte e Júpiter, no decorrer da guerra entre as Colónias Exteriores e os Planetas Interiores - para se transformar numa máquina de vingança brutal e impiedosa após a nave "Vorga" passar perto dos destroços à deriva da sua nave, ignorando os sinais de socorro e deixando-o para morrer.

Para todos os efeitos, Gully Foyle é um anti-herói - mas não é um anti-herói moderno, charmoso e irreverente, desligado e talvez até algo perverso, capaz de actos questionáveis mas não inteiramente mau. Gully Foyle não podia estar mais longe da descrição - o seu despertar violento nos destroços da "Nomad" torna-o numa besta em forma humana, desfigurado pela tatuagem dos fanáticos do asteróide no qual se salva do vazio sideral; o seu desejo de vingança inflama-o, aguça a sua inteligência e reforça a sua determinação; e a sua sede de vingança leva-o a fazer tudo - tudo - o que está ao seu alcance para a satisfazer. Matar, violar, destruir - nada é tabu no decurso da vingança de Gully Foyle, como cedo aprendem todos aqueles que se cruzam no seu caminho. Não é, de todo, um personagem agradável de acompanhar; mas a força com a qual se projecta pela trama de Bester acaba por se tornar irresistível para o leitor. E o seu desfecho, enfim, é memorável.

Recebido com alguma perplexidade no seu tempo, The Stars My Destination acabou por se tornar num clássico e num dos mais persistentes livros de ficção científica dos anos 50 - antevendo muito do arrojo estilístico que marcaria a revolução do género pela "New Wave" no final dos anos 60. A influência literária mainstream - não só na obra de Dumas como no poema The Tiger de William Blake, que serve de mote ao texto e que o resume de forma perfeita - combinada com a herança temática do género, e a forma elaborada e espantosa como descreveu em página escrita a sinestesia traumática do protagonista, numa passagem memorável, são disso exemplo. Mas a antecipação de The Stars My Destination vai mais longe: ao longo do seu enredo, encontram-se muitos dos temas que se tornariam fundamentais para o movimento que dominaria a ficção científica nos anos 80: o cyberpunk. Conforme Neil Gaiman explicou na sua introdução para a primeira edição do livro na colecção SF Masterworks da Gollancz, 
"The Stars My Destination is, after all, the perfect cyberpunk novel: it contains such cheerfully protocyber elements as a multinational corporate intrigue; a dangerous, mysterious, hyperscientific McGuffin (PyrE); an amoral hero; a supercool thief-woman..."
Os aumentos cibernéticos físicos e mentais poderiam ser outro exemplo de antecipação de cyberpunk (e estão na base de uma sequência de acção muito bem construída em termos visuais). Quando William Gibson, um dos "fundadores" do movimento, descreve o romance de Bester como uma pedrada no charco, não o faz por acaso: dos alicerces temáticos à intensidade narrativa, as raízes do cyberpunk vão até 1954. Mas o que Bester faz em The Stars My Destination é mais do que antecipar movimentos futuros na ficção científica - ele constrói, na melhor tradição especulativa do género, uma premissa fascinante e explora com intensidade as suas possibilidades, e sobretudo as suas consequências. O livro abre, após a célebre quadra de Blake, com um prólogo fascinante - e, lido à distância te todas estas décadas, curiosamente meta-referencial: 
This was a Golden Age, a time of high adventure, rich living, and hard dying... but nobody thought so.
No prólogo, Bester descreve a descoberta acidental da capacidade humana de teletransportação por puro impulso mental - uma técnica designada de Jaunting em homenagem ao cientista que a descobriu, Charles Fort Jaunte; estudos subsequentes feitos pela comunidade científica demonstraram que todos os seres humanos têm o potencial de dominar a técnica mental de jaunting, e de se teletransportarem de forma instantânea através de distâncias mais ou menos longas. É certo que o tema dos poderes psíquicos não é novidade na ficção científica quando The Stars My Destination é publicado em 1954; mas a forma como explora as mudanças radicais que a teletransportação pessoal introduz na economia e na sociedade é a todos os níveis espantosa. Bester começa por explicar como o jaunting tornou todos os sistemas de comunicações humanas obsoletos - como as redes de transportes urbanos deram lugar a plataformas de jaunting, colocadas em hubs estratégicos, para que todos as pudessem utilizar nas suas deslocações diárias. Logo no primeiro capítulo, a descrição do movimento urbano de Nova Iorque enquanto Robin Wednesbury ensina os seus pacientes a recuperarem a capacidade de teletransporte é notável pela vivacidade com que transmite a ideia de uma sociedade profundamente alterada - como todo o tipo de trabalhadores se pode deslocar para toda a parte, limitados apenas pela sua própria capacidade. E ao longo do livro, Bester deixa pequenos detalhes que reflectem todas as alterações socio-económicas: dos condomínios construídos no meio de nenhures à necessidade da construção de muralhas labirínticas nas habitações dos mais abastados, com o propósito de impossibilitar teletransportações para o interior da propriedade. Mas os privilegiados não recorrem ao jaunting; o seu estatuto social passa a ser feito por negação dessa espantosa força transformadora da humanidade. Quando o leitor vê Presteign de Presteign, o topo do topo da sociedade e um dos homens mais poderosos do mundo, a viver num fausto aristocrático digno do final do século XIX, a deslocar-se em carruagens e a impor a utilização de telefones, percebe como é escavado o fosso entre classes: pela obsolescência tecnológica. Por não ser necessário, possuir um carro e deslocar-se num carro passa a ser um luxo, um sinal de poder económico.

De resto, é também o jaunting que está na base da guerra travada entre os planetas interiores (Vénus, Terra/Lua e Marte) e as colónias exteriores (Io, Europa, Ganimede, Calisto, Reia, Titã e Tritão): as transformações socio-económicas que provoca transtorna de forma irremediável o equilíbrio económico construído no Sistema Solar, e precipita uma guerra - e é no decurso dessa guerra que Foyle irá emergir. Bester é mais sucinto na descrição do contexto alargado do confronto, mas nem por isso menos verosímil.

E Bester nem se fica por aqui: da cegueira de Olivia Presteign, filha do magnata, capaz de ver apenas no espectro infravermelho e na projecção de campos electromagnéticos à radioactividade de Dagenham; da telepatia unidireccional de Robin Wednesbury, incapaz de captar os pensamentos de quem a rodeia mas a transmitir os seus próprios sempre que o controlo lhe escapa, à feroz independência de Jizbella McQueen; e sem esquecer Foumyle de Ceres ou o enigmático "Homem em Chamas"; Bester constrói um elenco fascinante que lhe permite explorar os vários aspectos do futuro que constrói com mestria, encaixando cada personagem na complexa engrenagem que é a vingança de Foyle. O resultado é a todos os níveis soberbo: uma aventura vertiginosa e violenta, de uma riqueza conceptual ímpar e de uma força narrativa notável. A sua inteligente construção tornou-o, ao contrário do que aconteceu a alguns clássicos do género seus contemporâneos, impermeável à passagem do tempo: pela vivacidade da prosa, pelo arrojo estilístico e pelo enquadramento das ideias que apresenta, The Stars My Destination lê-se hoje com o mesmo fascínio de há quase seis décadas, quando foi publicado pela primeira vez. Que seja lido e relido, então.

* É claro que o que seria mesmo indicado seria pegar noutro trabalho de Bester, como The Demolished Man - mas ainda não o li. Fazê-lo será uma das minhas resoluções para 2014. 

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