6 de dezembro de 2013

Men at Arms: A autoridade e o carisma

Quando o Capitão Vimes, a poucos dias da sua reforma e do seu casamento com a aristocrata mais rica de Ankh-Morpork, Sybil Ramkin, recebe a notícia de que a "Night Watch" que comandou durante anos irá receber novos recrutas, está longe de imaginar que Lord Vetinari, o Patrician da cidade mais populosa de Discworld, quer introduzir naquela força policial (que de "força" e de "policial" tem muito pouco) o conceito moderno e politicamente correcto de quotas étnicas. Assim, alistam-se na "Night Watch" três recrutas: Detritus, um troll conhecido pela sua força bruta e parca inteligência (personagem recorrente desde os seus tempos de porteiro do célebre bar "The Mended Drum", em The Colour of Magic), Cuddy, um anão, e Angua, uma rapariga que não é bem aquilo que parece, pelo menos durante alguns dias de cada mês. Mas o surgimento de uma série de assassinatos, tão enigmáticos como aleatórios e sem aparente envolvimento directo da Guilda dos Assassinos, e o quase surgimento de um rei para a cidade, vai perturbar os últimos dias de Vimes enquanto Capitão da "Night Watch"; e vai levar novos e velhos recrutas a uma investigação no mínimo tumultuosa - e, como não poderia deixar de ser, hilariante. 

Esta é a premissa de Men at Arms, décimo-quinto livro da série Discworld, de Terry Pratchett, publicado em 1993. No que à estrutura interna da série diz respeito, é o segundo livro dedicado ao Capitão Samuel Vimes e à "Night Watch" de Ankh-Morpork, sendo uma sequela directa do oitavo volume, Guards! Guards! - e ainda que a leitura deste não seja obrigatória para a compreensão de Men at Arms, há alguma vantagem em lê-los de forma sequencial pela familiarização com as personagens e pelo estilo da história em si. Uma história com Vimes é, regra geral, uma história de tons noir - e Pratchett não perde a oportunidade de utilizar referências populares do género, como The Third Man ou Twin Peaks, enquanto explora o mistério dos estranhos homicídios (em Ankh-Morpork não há homicídios, apenas suicídios) que, de tão aleatórios que são, não podem não estar relacionados entre si - e que envolvem um artefacto envolto em mistério, um objecto único criado pelo mais extraordinário dos inventores. E isto numa cidade multi-étnica como Ankh-Morpork, onde trolls e anões estão sempre à beira de instigar uma guerra civil, onde a polícia é redundante pelo auto-policiamento que as várias Guildas - como a Guilda dos Ladrões, a Guilda dos Assassinos, a Guilda dos Palhaços ou até a Guilda dos Mendigos - fazem entre si das suas actividades. Curiosamente, o grande protagonista desta história da "Watch" não é Vimes, mas Carrot, o humano criado pelos anões das Montanhas Ramtops, enviado para a cidade em Guards! Guards! - e Pratchett explora com detalhe a fantástica personalidade desta personagem, contrapondo o carisma natural e o seu carácter conciliador, capaz de fazer sobressair o melhor de cada pessoa. No livro anterior, o autor descreveu Carrot como "o pensador mais linear de Discworld" - e, partindo dessa ideia, o leitor poderá acompanhar, com umas boas gargalhadas, esta aventura. O interrogatório na Guilda dos Palhaços é digno de antologia.

Mas mais do que uma sátira ao noir ou aos police procedurals mais modernos, Pratchett desenvolve em Men at Arms, uma reflexão muito curiosa sobre a autoridade e a sua legitimação, no contraponto que estabelece entre a autoridade carismática de Carrot, a a autoridade que decorre da ditadura benevolente (e, acima de tudo, inteligente) de Vetinari, e a autoridade real, dos antigos e depostos reis de Ankh-Morpork. A conclusão de que a cidade nunca tivera um bom governante porque a única pessoa que o poderia ser recusa o governo justamente por esse motivo é soberba, e encerra na perfeição tanto a história pessoal de Carrot como o caso que a "Night Watch" se encontra a investigar.

No resto, Men at Arms é Pratchett no topo da sua forma - com uma excelente prosa repleta de puns, de trocadilhos bem montados, de referências óbvias e obscuras que garantirão surpresas tanto na primeira leitura como em releituras, e de humor inteligente na forma como pega em convenções e clichés para lhes dar a volta, nas situações que cria e nas personagens que elabora (Angua merece destaque pelo formidável twist, tornado melhor num regresso à sua introdução uma vez concluída a leitura). Para além dos membros e dos recrutas da "Night Watch", outras personagens recorrentes regressam com pequenos papéis, como Mustrum Ridcully, o Reitor, o Bibliotecário, C.M.O.T Dibbler, Mrs. Cake - e Gaspode, o cão-prodígio de Moving Pictures, aqui com um cameo alargado e muito interessante sobre a natureza canina. Em termos genéricos, Men at Arms poderá, como qualquer outro livro de Discworld, decerto não desiludirá quem por ele optar para uma introdução neste universo; mas a leitura beneficia imenso de uma maior familiaridade com este mundo secundário e com as personagens que o povoam. 

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