15 de novembro de 2013

Lords and Ladies: O sonho quântico de uma noite de Verão

Um dos mais intrigantes aspectos da longa série Discworld, desenvolvida por Terry Pratchett ao longo dos últimos trinta anos (a data é exacta: The Colour of Magic, o primeiro livro da colecção, foi publicado em 1983) reside no carácter autónomo de quase todos os livros. Grosso modo, a cronologia interna da série no seu todo segue a ordem de publicação, tal como as várias ramificações narrativas - sejam as histórias das Bruxas de Lancre, da Morte, dos Feiticeiros (e de Rincewind), da Patrulha da Noite, ou mesmo até dos títulos individuais, isolados em termos temáticos. Isso, porém, não obriga a uma leitura sequencial - e se há vantagem em ler, por exemplo, Mort (o quarto livro e o primeiro dedicado apenas à Morte) antes de Reaper Man (o décimo-primeiro livro e o segundo dedicado àquela personagem) de modo a acompanhar a evolução da personagem e da escrita, tal vantagem será sobretudo uma questão de escolha. Há excepções, claro; Lords and Ladies, a décima-quarta aventura de Discworld, publicada originalmente em 1992, será porventura uma das mais notórias, enquadrando-se na sequência directa dos acontecimentos de Wyrd Sisters e Witches Abroad - cuja leitura irá tornar todo o texto mais claro, mais lógico e, sobretudo, mais divertido. 

Recordemos, então (com inevitáveis spoilers): no shakespereano Wyrd Sisters, o coven composto por Granny Weatherwax, Nanny Ogg e Magrat Garlick, envolveu-se em intriga palaciana e deu a volta ao texto - de forma muito literal - para a inesperada coroação de Verence como rei do minúsculo reino de Lancre, algures nas montanhas Ramtops; e em Witches Abroad, as três bruxas viajaram para o distante reino de Genua para se envolverem num complicado conto de fadas, no qual não faltaram varinhas mágicas, fadas madrinhas, jogos de espelhos e rituais de voodoo. Lords and Ladies trata do regresso de Granny, Nanny e Magrat a Lancre, e do que lá vão encontrar após a sua longa ausência. Isto quando uma série de estranhos crop circles começa a manifestar-se um pouco por todo o mundo nos lugares mais improváveis - não só em campos cultivados como também, por exemplo, em papas de aveia.

Lords and Ladies abre com uma analepse que transporta o leitor para um fragmento do passado de Granny Weatherwax, durante a sua juventude, para logo regressar ao presente - a Lancre, às vésperas do casamento real que promete trazer a fina flor das Ramtops e até os representantes da Unseen University àquele aconchegado território. Mas algo espreita por entre as pedras, erigidas pelos anões, que forma o círculo conhecido como Dancers; um reino inteiro, escondido e esquecido, à espera da oportunidade apresentada pelo enfraquecimento das fronteiras que separam uma quantidade infinita de Universos para se voltar a instalar sobre a realidade. O que levará Granny a ter de enfrentar o seu passado (de várias formas), Nanny a resistir (ou não) às investidas de um anão sedutor e Magrat a encontrar uma força que ninguém imaginaria que ela possuísse. 

O facto de ser, em termos práticos, uma sequela em nada enfraquece Lords and Ladies; a exploração mais aprofundada de algumas das mais importantes personagens deste universo ficcional revela-se interessante e divertida (como não poderia deixar de ser). Se nas primeiras páginas a prosa parece estranhamente pouco articulada (excepção feita à breve passagem da Morte, a todos os níveis extraordinária, digna de ser destacada como um conto singular), essa sensação cedo se desvanece à medida que Pratchett ganha fôlego e recupera temas e motivos da célebre peça A Midsummer Night's Dream, de Shakespeare, para os subverter e virar do avesso de forma sempre hilariante, e por vezes até ritmada por danças Morris. A combinação improvável das bruxas de Lancre com os feiticeiros da Unseen University gera algumas situações curiosas - e se é certo que ao décimo-quarto livro o leitor experimentado já pode imaginar que gags esperam o Librarian, o feiticeiro transformado em macacoprimata por acidente mágico, nem por isso deixará de se surpreender com os fragmentos do passado do Archchancellor Mustrum Ridcully. E, claro, cenas memoráveis como o banho de Nanny Ogg, o caixote de Greebo, a peculiar disposição de algumas rochas em Lancre ou a aplicação prática das teorias quânticas de alguns feiticeiros mais jovens - e mais deslumbrados - da Unseen University*. É certo que Lords and Ladies não terá talvez a coesão narrativa de, por exemplo, Small Gods - alguns elementos explorados na primeira metade acabam por não ter a importância devida na segunda, como Herne ou as jovens bruxas -, mas nem por isso deixa de ser uma aventura pautada pelo excelente humor de Pratchett e repleta de um sem-número de referências intrigantes e de puns bem articulados que conduzem invariavelmente à gargalhada. À semelhança do que aconteceu em Wyrd Sisters, os leitores de Shakespeare mais experientes encontrarão nestas páginas uma paródia bem montada; e os restantes decerto não deixarão de apreciar as piadas.

*Há um excelente aprofundamento do tema no conto Death and What Comes Next, de 2004

Sem comentários: