29 de novembro de 2013

Entrevista a Ian McDonald, parte 3: Fantasia e ficção científica: influências, preferências e o estado da arte

Terceira e última parte da longa entrevista com Ian McDonald, autor de obras como Desolation Road, River of Gods e Brasyl, que esteve em Lisboa há poucos dias na qualidade de convidado especial do Fórum Fantástico 2013. Mais informal, esta última parte acabou por ser mais uma conversa do que exactamente uma entrevista (e muitos foram os minutos que não inclui neste texto), onde se falou de tudo um pouco, sempre com a ficção científica e a fantasia como pano de fundo: influências, actividades, a passagem pela televisão, as tendências e os problemas da ficção de género contemporânea, John Brunner e o cinema. E mais alguns tópicos. Aqui fica:



João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): Agora que já falámos da bibliografia passada, presente e futura, talvez seja uma boa altura para regressarmos ao início. Quando percebeu que queria vir a ser um escritor, e quando escreveu as suas primeiras histórias?

Ian McDonald (IMD): Creio que, como a maioria dos escritores, comecei em criança – e as minhas primeiras histórias caberiam naquilo que hoje é designado por “fan fiction”. Escrevia sobre aquilo de que gostava – e como costumava seguir Dr. Who e Star Trek, os meus textos tinham fortes influências do universo de Star Trek. Há um momento em que percebemos que é exactamente isto que queremos fazer – escrevemos alguma coisa e não a achamos tão má quanto isso. Em termos práticos, a coisa não é mais do que um grande truque de autoconfiança – levamo-nos a acreditar naquilo que escrevemos, e na vontade que outras pessoas terão de o ler. A minha primeira história, vendi-a em 1983, faz agora 30 anos; o meu primeiro romance foi publicado em 1988. Como o tempo passa!

Em criança, lia tudo o que podia. Em parte, o que me motiva a direccionar a minha série juvenil para miúdos de treze ou catorze anos é ser essa a idade em que eles deixam de ler. Os rapazes lêem com gosto até essa idade; a partir daí, muitos passam para obras audiovisuais, como videojogos e filmes. Alguns continuam a ler, é certo, mas muitos não; espero que a minha série os atraia e os faça continuar a ler.

VA: Referiu Dr. Who e Star Trek. Algumas das suas primeiras influências foram então audiovisuais?

IMD: Julgo que a maior parte das pessoas começa de facto na televisão. Bom, temos de começar em algum lado, não é? Lembro-me de coisas como Tintin: Destination Moon, por exemplo. Mais tarde acabei por passar mais da cultura visual para a palavra escrita simplesmente por uma questão de disponibilidade: não havia muito espaço na televisão e no cinema para ficção científica, mas havia imensos livros na biblioteca. E eram melhores do que o que dava na televisão: tinham grandes ideias, grandes efeitos especiais… autores como E. E. “Doc” Smith e afins. Lembro-me de ter mais ou menos onze anos e de ter lido os livros de Lensman todos – tentei relê-los há poucos anos, e são péssimos! Mas quando se tem 11 anos, é do melhor que há. Agora passar aquilo para o cinema – o orçamento seria astronómico.

VA: Quais foram então os primeiros contactos e as primeiras influências em termos de literatura? Para além de “Doc” Smith, que já foi mencionado.

IMD: Num grupo de amigos na escola tínhamos o hábito de trocar livros de ficção científica entre nós. Lembro-me de ler o Capitão W. E. Johns, um autor britânico de aventuras de pilotos temerários, com o Capitão “Bigglesworth”. Histórias bem escritas e bem concebidas – excelente ficção para crianças, sobretudo para rapazes. Descobri que ele também escreveu alguma proto-ficção científica, passada na cintura de asteróides. Procurei-os na biblioteca, e depois passe para outros livros de ficção científica. Havia um clube de leitura na escola; lembro-me de começar a ler livros mais juvenis, e depois passar para obras mais complexas. A biblioteca local tinha uma excelente selecção de ficção científica; li-a praticamente toda. Também a livraria local tinha uma óptima prateleira de ficção científica; quando comecei a ter algum dinheiro disponível, lembro-me de escolher com muito cuidado que livros comprar, e em que livros gastar dinheiro… lá está, quando é o teu dinheiro…

VA: … tem de valer a pena.

IMD: Mesmo! Tem de ser O livro!



VA: Hoje em dia, quais são os seus autores preferidos?

IMD: Ainda compro tudo o que é publicado da Ursula K. Le Guin… ela consegue emocionar-me onde muitos outros autores falham. Julgo que isso se deve ao facto de os mundos dela serem tão humanos…

VA: Refere-se apenas à ficção científica dela, ou também à fantasia?

IMD: Li a fantasia em último; acho mais difícil suspender a descrença neste género. Claro que há grandes histórias de fantasia, já referi o Little, Big… mas não leio muita fantasia. Descobri uns quantos autores de horror que aprecio – admiro o que o horror faz, é um efeito curioso e interessa-me muito a capacidade de o fazer. Mas hoje em dia também não leio muita ficção científica. De todo. Na prática, todos os escritores são inseguros… e se eu ler um livro de ficção científica mesmo muito bom, vou roubar-lhe ideias (risos). Qualquer autor que diga não o fazer – está a mentir. De qualquer forma, hoje em dia as minhas leituras acabam por ser mais factuais que literárias.

VA: Referiu a Ursula Le Guin como uma das suas preferidas…

IMD: Entre outros. Na ficção curta lembro-me de ler muitas histórias do Harlan Ellison – um grande escritor de ficção curta. As histórias dele não são apenas boas – elas atingem-te como um murro no estômago. E a forma como utiliza a linguagem é extraodrinária, a estrutura é excelente… o que ele fez na ficção curta nunca tinha sido feito antes; ao pé das histórias dele, até os contos mais ousados do Clarke e do Asimov pareciam seguros. Também me lembro de uma história formidável do James Blish, Surface Tension. Pertence à série The Seedling Stars, na qual naves espaciais com a capacidade de criar humanos adaptados a diferentes planetas são enviadas para colonizar vários mundos; uma destas naves despenha-se num mundo onde apenas existe vida na água, e cria uma raça de seres humanos de dimensões microscópicas. Há uma missão para construir uma nave espacial de madeira, movida por bactérias, para ir de um curso de água para outro… as descrições desta nave espacial milimétrica a passar sobre uma rocha soalheira para chegar à próxima zona com água – isso é ficção científica! Surface Tension é uma história fenomenal – quem a leu jamais a esquece.

VA: Regressando um pouco às influências televisivas: também já trabalhou em televisão, e já escreveu um filme televisivo. Como foi essa experiência? O filme foi produzido e transmitido?

IMD: Sim, foi! Chama-se Doomwatch: Winter Angel. Doomwatch era uma série da BBC que passou nos anos 70 sobre um grupo de cientistas a investigar abusos científicos e tecnológicos feitos por governos e por corporações. Foi escrita por Kit Peddler, que também trabalhou em Doctor Who; foi ele, por exemplo, quem inventou os "Cybermen". Enfim, ele faleceu, e os direitos de Doomwatch ficaram disponíveis. Mas os produtores queriam que fosse um escritor de ficção científica, e não um escritor de televisão, a trabalhar no argumento. Por isso, perguntaram ao Iain Banks, que na altura estava a trabalhar na adaptação de The Crow Road; depois perguntaram ao Jeff Noon, cujo agente disse que ele não escrevia televisão… e então perguntaram-me a mim, e eu aceitei. Fizemos a proposta para uma série, acabámos por obter um filme televisivo. Escrevi o argumento a meias com outro autor – não tinha nem tempo nem conhecimento sobre escrita para televisão para o fazer sozinho. A produção demorou três anos; o filme estrou em 1999, e está disponível em DVD! Foi uma experiência invulgar, mas abriu-me as portas da televisão. Eventualmente acabei por trabalhar numa produtora televisiva infantil… com os Muppets!

VA: Os Muppets? Isso deve ter sido muito divertido.

IMD: Se foi! Mas para contextualizar: a Sesame Workshop, produtora da Rua Sésamo, faz diferentes versões para vários países em todo o mundo, e pensaram ser altura de a Irlanda do Norte ter a sua versão do programa. Abordaram várias produtoras; na altura, estava a trabalhar numa nova… fizemos uma proposta e ganhámos. Eles enviaram vários escritores para nos ensinarem a escrever à maneira da Rua Sésamo, e tivemos direito aos nossos próprios bonecos, feitos para nós pelo Jim Henson’s Creature Shop. Foi muito bom mesmo. Muito divertido.

VA: Quando referiu isso esta manhã [na sessão aberta do Workshop Trëma de Escrita Criativa Fantástica, na manhã de 16 de Novembro], disse que a passagem pela televisão mudou a forma como encarava a escrita. Como se deu essa mudança?

IMD: Mudou, de facto. A escrita tem duas vertentes: há a arte da escrita, e há o ofício da escrita. E o ofício pode ser aprendido e melhorado. Aquilo que a televisão ensina é basicamente o ofício: os guiões são muito mais estruturados. Trabalhar em televisão fez-me reflectir com muito mais clareza sobre as minhas histórias: como funcionam, como estão estruturadas, qual é o seu ritmo, quais são os pontos de tensão e como se interligam para conduzir ao clímax... tudo isso pode ser aprendido na escrita televisiva, porque em televisão, como no cinema, as coisas não são demasiado complicadas. Estes meios tendem a contar histórias simples com personagens simples e emoções simples – retiram tudo aquilo que não é essencial para que o espectador veja algo e sinta algo. Mas isso funciona, e é algo muito útil de se aprender. Leva um autor a questionar tudo aquilo que coloca num livro. Enfim, é uma forma de disciplina excelente, e ensina a estruturar uma história e a levá-la até aos momentos mais emotivos.

VA: Durante o workshop, falou-se ainda da passagem entre várias personagens e vários pontos de vista. Em Desolation Road isto é feito de forma elaborada, com um elenco enorme que obriga o leitor a acompanhar várias histórias diferentes; em Brasyl há menos personagens, mas as histórias nem por isso são menos centradas. Enfim, são estruturas narrativas pouco convencionais – não gosta mesmo de seguir uma narração linear, pois não?

IMD: Depende do livro… o título de Desolation Road tem uma pista – de certa forma, o livro é sobre a cidade, e as vidas que por ela passam. Em River of Gods, que tem nove personagens, quis fazer algo ao estilo de Charles Dickens, com uma visão transversal da sociedade. Daí haver o ladrão, o ministro… em The Dervish House há seis personagens, mas vivem ou trabalham todas nesta “dervish house”. Brasyl tem três universos paralelos em três linhas temporais – isso determinou toda a estrutura. Mas sim, gosto de livros com estruturas narrativas interessantes – aborrece-me a velha sequência de a personagem X fazer isto, e depois aquilo; gosto de me sentir atirado para uma autêntica tempestade de acontecimentos e personagens, mas essa é uma preferência meramente pessoal. Algumas pessoas gostam de histórias que seguem de A para B; para mim, um livro não é tanto como uma estrada, que leva o leitor do início para o fim, mas sim como um mapa de um território, que mostra várias formas de ir de A a B.

VA: Isso leva-me para um dos meus livros de ficção científica preferidos: Stand on Zanzibar, de John Brunner. Encaixa perfeitamente nessa descrição.

IMD: Grande livro, Stand on Zanzibar. Grande livro! Usei uma parte daquela estrutura narrativa para a escrita de River of Gods.

VA: Bom, já o John Brunner tinha usado a estrutura narrativa de John dos Passos…

IMD: E usou-a melhor, na verdade! (risos) Mas todos os livros que o Brunner escreveu nesse período são excelentes: Stand on Zanzibar, The Sheep Look Up, The Jagged Orbit – muito bom também. E The Shockwave Rider. São livros formidáveis. Ele estava mesmo a escrever sobre os tempos que vivia naquela altura.

VA: E acabou por antever o cyberpunk.

IMD: Sim – adorei quando surgiu o cyberpunk. Toda a gente queria escrever assim! Por um breve período, a ficção científica foi "fixe" (risos). Mas hoje vivemos naquele mundo. Na prática, o cyberpunk não foi tanto um movimento literário como um documentário.

VA: É um exercício interessante, ler os livros desse período, como Neuromancer, e ver como conseguem manter o seu charme pertencendo em definitivo aos anos 80.

IMD: Gosto muito do detalhe de Neuromancer ter sido escrito numa máquina de escrever!

VA: Uma grande ironia, de facto! Mas voltemos a si: uma das coisas que mais me chamou a atenção enquanto li alguns dos seus livros foi a linguagem. Sendo português, Brasyl foi uma leitura muito interessante por isso – estava sempre a encontrar expressões e ideias encaixadas no texto.

IMD: Provavelmente o português não era grande coisa… (risos)

VA: Não só era bom como tornou todo aquele universo ficcional mais tangível e verosímil.

IMD: Acho que deu um ritmo próprio à história. Queria que ela soasse como música – foi por isso que utilizei tantas expressões em português. Há coisas que só podem ser ditas em português, não há tradução directa – aprendi isso com a minha consultora linguística. É a velha história de a linguagem moldar o pensamento; queria passar a ideia de que há coisas que só podem ser ditas em português, sem tradução para inglês; que passa-las para inglês seria torna-las irrelevantes. O livro foi escrito para ser lido quase como jazz. 

VA: Em River of Gods também são usadas muitas expressões e muitos conceitos próprios daquele idioma…

IMD: The Dervish House tem menos. Com uma diferença: pronunciei tudo correctamente em turco – que, de certa forma, é um idioma muito lógico, mas com uma pronunciação diferente. Quis mudar a forma como os leitores olham para caracteres familiares – lá está, um pouco de deslocação, de saída da zona de conforto para colocar o leitor num outro mundo onde os sons e os pensamentos não são exactamente como seria de esperar. Tive imensas queixas de americanos… Adoro os Estados Unidos, são um grande país com gente extraordinária, mas fartaram-se de se queixar, primeiro a propósito do “espanhol” em Brasyl… (risos). Muita gente reclamou da grande quantidade de palavras estranhas em The River of Gods…. Vamos lá ver, Dune tem muitos mais termos estranhos do que River of Gods. E ninguém reclama de palavras inventadas num romance de fantasia – mas reclamam de palavras reais num livro de ficção científica sobre a Índia. Enfim, nada a fazer.

VA: E o mercado da ficção científica literária, como o vê hoje em dia? Parece estar de alguma forma a perder força em relação à fantasia e a outras tendências…

IMD: Nos Estados Unidos e no Reino Unido está a passar por grandes dificuldades; é muito difícil conseguir publicar ficção científica. A fantasia está em grande neste momento; o horror está a regressar – no final dos anos 80 e no início dos anos 90 seria talvez o maior género, e desabou de repente; está a voltar agora. Julgo que um dos grandes problemas da ficção científica reside no facto de alguns dos seus motivos e temas recorrentes terem passado para os ecrãs. Histórias com naves espaciais? Star Trek. Viagens no tempo? Doctor Who está em alta. Muitos dos conceitos fundamentais do género podem hoje ser encontrados em filmes e na televisão, e torna-se difícil competir. Os livros precisam de arriscar mais, de trazer novas ideias – mas é sempre difícil publicar coisas mais arrojadas. Há também uma percepção crescente de que a ficção científica é para rapazes, e que as raparigas não gostam de a ler e muito menos quererão escrevê-la – o que não só não é verdade, como é particularmente pernicioso. Se os editores começarem a pensar que a ficção científica é só para rapazes, vão direccioná-la nesse sentido, e isso mudará em primeiro lugar os livros que estão a ser escritos, e depois os próprios autores. Isso seria terrível para o género.

VA: Mas esse estereótipo era comum nos tempos da Golden Age.

IMD: E parece estar a voltar. Talvez isso também se deva ao facto de os videojogos ainda serem muito orientados para um público masculino, e de utilizarem muito os temas e as ideias da ficção científica – pensemos em Halo e noutros títulos do género. Pessoalmente, tenho muita sorte: a minha base de leitores está dividida equitativamente entre ambos os sexos, o que é óptimo. Ficaria muito preocupado se a ficção científica se tornasse numa coutada exclusiva para rapazes, algo que as raparigas não quisessem ler. O futuro da ficção científica enquanto género preocupa-me bastante.

VA: Entendo o que quer dizer quando afirma que as ideias da ficção científica estão a passar para os meios visuais; no entanto, e apesar de alguns êxitos recentes, não parece haver muito interesse em adaptar os mais populares clássicos da ficção científica literária para o cinema. Houve o Ender’s Game este ano, claro, mas foi uma excepção e não a regra. Há anos que se fala em adaptar The Forever War, Rendezvous With Rama

IMD: Bom, também se falou na adaptação de Ender’s Game durante anos… Julgo que isso se deve a outra coisa: a ficção científica que lemos é uma literatura de ideias – e, regra geral, o cinema lida mal com ideias. Dá-se melhor com emoções simples, com pessoas a bater em coisas, com grandes explosões no céu. Talvez isso possa explicar por que motivo as adaptações não costumam resultar. Mesmo Ender’s Game esteve longe de ser o sucesso esperado. Na verdade, não me lembro de muitas adaptações que tenham resultado. Há 2001: A Space Odyssey, claro, mas isso foi um projecto diferente.

VA: Há o Blade Runner, mas é uma adaptação muito livre. Mas há o filme de A Scanner Darkly, de Richard Linklater.

IMD: Essa não foi má, de facto. Curiosamente, as histórias do Philip K. Dick são o maior caso de sucesso em termos de adaptações literárias para cinema. Ele coloca questões que funcionam bem na lógica cinematográfica: sobre o que é real ou não, sobre como acreditar no que se vê… no fundo, o cinema é sobre isso. Consiste em imagens em movimento numa parede lisa, com ruído, fragmentos narrativos reorganizados entre si… e de alguma forma tudo isso dá origem a uma experiência atractiva e emocionante. Mas não me ocorrem muitas mais adaptações de qualidade.

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