25 de novembro de 2013

Entrevista a Ian McDonald, parte 1: Dos mundos cientifico-ficcionais em desenvolvimento ao Marte terraformado de Desolation Road

Para além das interessantíssimas sessões do Fórum Fantástico – na apresentação da edição portuguesa de Brasyl e na sessão aberta da Oficina Trëma de escrita criativa fantástica, o britânico Ian McDonald teve ainda tempo para estar um pouco, que não foi tão pouco quanto isso, à conversa com o Viagem a Andrómeda. O resultado é a longa entrevista que será publicada em três partes ao longo desta semana – com esta primeira a incidir sobretudo sobre a sua obra literária na ficção científica, desde a mais recente trilogia temática composta por River of Gods (2004), Brasyl (2007) e The Devrish House (2010), ao Marte descrito no seu primeiro romance, Desolation Road (1988).

João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): O Ian McDonald nasceu em Inglaterra e mudou-se para a Irlanda ainda em criança, onde vive desde então. E acabou por escrever três livros de ficção científica com histórias que decorrem em países completamente diferentes em termos culturais, históricos e sociais. O que o motivou para isto?

Ian McDonald (IMD): Ainda que tenha escrito histórias de ficção científica situadas no país, a Irlanda do Norte – mesmo a Irlanda do Norte “problemática” onde cresci e onde vivi – nunca seria um daqueles grandes locais para ficção científica. Não está no centro das coisas, como os Estados Unidos ou o Japão; não é “fixe” como eles. E isso levou-me a pensar em algumas coisas: por que motivo tomamos alguns contextos como padrão para a ficção cientifica? Passa sempre pelos americanos, ou pelos japoneses com os seus robots gigantes – é sempre sobre como o futuro será na perspectiva destes países. Outra: que países nunca vimos verdadeiramente representados na ficção científica? Costumava – costumo ainda – seguir Star Trek, e um dia reparei que nunca lá vira um indiano. Star Trek orgulha-se de ser internacional e multi-étnica, quando na verdade é apenas um reflexo da estrutura étnica dos Estados Unidos. Em termos práticos, são os americanos no espaço. A partir daqui acabei por chegar à conclusão de que nunca tinha visto um grande livro de ficção científica passado numa Índia futura, e sobre essa Índia futura. Por volta de 1999 todas estas ideias começaram a cristalizar-se na minha mente; num almoço com o meu editor e o meu agente – receita para o desastre, como se sabe – falei-lhes sobre isto, e o meu editor disse-me: tens de escrever tu esse livro. Comecei a desenvolver a ideia, e o resultado foi River of Gods – um livro grande e pesado sobre a Índia (a Índia costuma ter livros grandes e pesados), com uma história situada em 2047, um século após a independência do país. A ideia é ter uma visão transversal daquela sociedade, com a Índia dividida em vários sub-estados rivais, a monção a falhar pela terceira vez e a possibilidade da guerra pela água no Ganges. É sobre esse pano de fundo que as histórias das nove personagens acabam por convergir de forma gradual.

Na altura inclui duas personagens norte-americanas para tornar o livro mais… atractivo para o público dos Estados Unidos – quem me dera não o ter feito! Mas era algo que poderia ser corrigido no livro seguinte, que acabou por ser Brasyl – situado no Brasil, claro, em três períodos diferentes (2032, 2006, 1732). Há apenas um personagens estrangeiro em Brasyl, um missionário irlandês que estudou em Coimbra. O terceiro livro, The Dervish House, decorre na cidade de Istambul em 2027 – cinco anos após a entrada da Turquia na União Europeia; todas as suas personagens são turcas.

Cada livro aborda um grande tema da ficção científica à luz de um país e da respectiva cultura. River of Gods explora a inteligência artificial; dei por mim a pensar sobre o tema, sobre como poderia funcionar e como poderia ser encaixado no panteão e na teologia Hindu. Brasyl é sobre computação quântica e universos paralelos. E The Dervish House aborda nanotecnologia, economia e a forma como ambas estão relacionadas.

VA: Uma obra tão ambiciosa decerto terá exigido uma pesquisa muito intensiva e detalhada.

IMD: Bom, de certeza que não faltaram incorrecções e imprecisões, mas isso não me preocupa muito – de resto, é perfeitamente possível que eu descreva de forma incorrecta e imprecisa o que se passa ao fundo da minha rua (risos). Cada um destes livros leva três ou quatro anos a escrever, e exige muita leitura. E acabo sempre por comprar muita música destas culturas…

VA: No final de Brasyl há até uma lista de músicas.

IMD: É mais uma banda sonora. Continuo a gostar muito de música brasileira – compro imensa. Percebo como funciona e aprecio a sua estética própria, que é completamente diferente da música de outras partes do continente americano. Mas quanto à pesquisa: no final, 80 por cento da pesquisa acaba por não ser utilizada de forma directa, mas é fundamental para que se perceba o que irá de facto ser necessário para a história. No caso de River of Gods, sobrou imenso material que acabou incluído numa colecção de histórias intitulada Cyberabad Days (2009). Enfim, leio muito e tento, na medida do possível, visitar os locais. Há coisas que só se percebem estando lá, indo lá. Falo com as pessoas, tento aprender tudo da linguagem e da história, por pouco que seja. Tento encaixar-me naquela cultura, o que é algo bastante difícil. Mas diga-se de passagem que também não existe ninguém que seja completamente típico de uma determinada cultura – isso seria um estereótipo perfeito, e nunca resultaria em livro. As minhas personagens são todas individuais em si; todas reflectem algo fora do dito “mainstream” das suas sociedades. Mas sim, dá trabalho – como disse, três ou quatro anos.



VA: E qual é o maior desafio? A pesquisa em si, ou compreender o que em cada cultura encaixa e o que não encaixa na história? Por exemplo, em Brasyl é muito interessante ver na história de 2006 duas coisas muito concretas e que, pelo menos na perspectiva que de Portugal temos do Brasil, estão muito entranhadas na sociedade: o futebol e o entretenimento.

IMD: A história de Marcelina, sim. Não queria que ela trabalhasse em telenovelas – seria demasiado óbvio. Por isso optei pela reality TV. Aliás, eu já trabalhei em reality TV; Estás a ver todos aqueles programas horríveis que ela tenta criar no livro? Eu tentei criá-los. A todos! (risos).

VA: A sério?

IMD: Sim! Foram conceitos de programas que apresentei à empresa para a qual trabalhava. Nunca foram produzidos (risos). Quanto ao futebol, bom, eu sempre gostei de futebol. Repara, eu cresci nos anos 70, quando havia grandes ídolos desportivos, como Muhammad Ali, a selecção brasileira de 1970. Foram bons tempos, e quis de alguma forma recordar isso. De resto, é um facto que houve quem se suicidasse após a fatídica final de 1950; e isso diz muito sobre uma cultura, quando há quem se mate por causa de onze tipos a chutar uma bola num campo relvado. É importante.

VA: E como se integra tudo isso – essas ideias culturais, essas histórias – numa grande narrativa de ficção científica?

IMD: Boa parte do processo consiste em deixar coisas de fora e fazer escolhas. Dou-te um exemplo. Tive uma longa discussão com um norte-americano sobre a minha utilização de capoeira – os americanos são mesmo assim, adoram tecer considerações morais sobre os outros. Ele dizia que eu não podia utilizar capoeira daquela forma, que teria sido melhor utilizar o Jiu-Jitsu brasileiro. Ora eu conhecia muito bem o Jiu-Jitsu brasileiro, é uma excelente arte marcial; mas o que eu queria era algo que reflectisse a cultura e a herança afro-brasileira. A capoeira não tem nada que ver com ser o melhor ou mais forte; é mais jovial, mais dada a truques, ao engano. Claro que o tipo não percebeu nada disto; para ele, era tudo uma questão da carga de porrada que se consegue dar. E para isso, claro, temos o Jiu-Jitsu brasileiro (risos). Ele não fez a mais pequena ideia daquilo em que eu estava a pensar. Enfim, americanos.

VA: Bom, toda a história em redor do futebol e do guarda-redes – vê-se logo que não podia ter sido escrita por um americano.

IMD: Obrigado! (risos) Mas vamos lá ver: o livro é sobre universos paralelos, e há várias pistas a indicar que o 2006 que lá vemos não é bem o nosso universo – a mais óbvia é o facto de Barbosa ter falecido, salvo erro, em 2001. Depois há outras histórias… uma de que gosto muito é aquela sobre o troféu da Copa do Mundo desaparecer no Brasil, e de o David Beckham ser raptado e levado para o topo da favela, onde o barão da droga tira uma fotografia com ele e com a taça, e o leva de volta depois. Não me lembro onde fui buscar esta história, mas não podia não a incluir no livro!

VA: Já que falamos de Brasyl: de certa forma, e sobretudo na história que decorre em 1732, o texto acaba por reflectir também um pouco sobre Portugal, já que se passa num Brasil ainda colonial. E, claro, há o protagonista, o Jesuíta irlandês educado em Coimbra. Isso também exigiu pesquisa sobre colonização portuguesa? A que fontes recorreu?

IMD: Sim, e há livros excelentes sobre o tema. Há um em Inglês intitulado Red Gold, de John Hemming; é possível que seja o livro mais interessante que alguma vez li. A história colonial do Brasil é terrível, com milhões de mortes. E os Jesuítas eram interessantes – e complexos. Essa, aliás, foi uma das partes da pesquisa de que mais gostei. Viajámos pelo Amazonas, que é um dos sítios mais incríveis do planeta. Imagino que as margens do rio fossem muito povoadas durante toda a sua extensão, pelo menos até a doença dizimar milhões de pessoas. Claro que, na prática, a história do Padre Quinn é Heart of Darkness [de Joseph Conrad] com Jesuítas, e mais algumas ideias. Há outra cuja fonte perdi, mas que perdurou: a história da basílica flutuante, da catedral de madeira que alguns padres construíram no Amazonas. Deparei-me com isso uma vez; não a anotei, e nunca mais voltei a encontrar a referência. Mas lá está: é uma daquelas ideias que quando a ouves não ficas indiferente. Uma basílica flutante! Tinha de a incluir. Era demasiado boa para não a incluir.

VA: Não deixa de ser interessante ver como se relacionam esses três livros, muito pouco convencionais na ficção científica contemporânea, com as suas obras mais antigas. O seu primeiro romance, Desolation Road, foi publicado nos anos 80; e apesar de ter um cenário, digamos assim, mais clássico na ficção científica, acabou por combinar elementos tradicionais com o realismo mágico sul-americano. O que não deixa de ser também muito pouco comum.

IMD: Na verdade, não sei se algo daquele tipo já tinha sido feito antes, ou se alguém voltou a fazê-lo. Mas o mundo em que vivemos, as nossas sociedades – nem todos os seus aspectos são racionais em absoluto. Aliás, há sempre muita irracionalidade à nossa volta – nas coisas em que as pessoas acreditam em termos de saúde, nas terapias e nos remédios a que recorrem para melhorar… há quem acredite em fantasmas e anjos da guarda – enfim, há uma enorme nuvem de irracionalidade a pairar sobre a nossa cultura racional. Mas parece-me a mim que a ficção científica está sempre a dizer: fomos para outros mundos e deixámos toda essa irracionalidade idiota para trás, somos completamente racionais. Nunca será assim. Creio que há algo nos seres humanos que os atrai para o irracional. Por isso, o que queria fazer era criar este Marte futuro, ainda não todo terraformado mas já habitável, e dar-lhe uma forte carga irracional. Como dizia a célebre lei de Arthur C. Clarke, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Tudo pode ser explicado através da tecnologia, mas até lá… Desolation Road é sobre um lugar assim, tecnológico e mágico.

VA: Logo no início, há aquele episódio com a sonda da ROTECH – que só acaba por ser explicado mais tarde, e de forma muito casual.

IMD: Era algo que fazia parte da vida das pessoas, e elas não se preocupam com essas coisas no seu dia-a-dia.

VA: E o leitor percebe isso. É como se a personagem, o Dr. Alimantando, soubesse o que era aquilo, e o leitor não.

IMD: Exacto, ele sabia. Jamais explicaríamos como funciona uma escavadora – na prática, a ideia é a mesma. Esse é um dos grandes problemas da ficção científica: como passar a informação. Há o infodump, claro. No meu caso, tento fazê-lo através do contexto – tudo será explicado quando for necessário; tudo acontecerá quando tiver de acontecer. Não quero interromper a narrativa para explicar algo – se o leitor não souber naquele momento, irá descobrir mais à frente.

VA: Quais foram as maiores influências para este trabalho?

IMD: Basicamente, Ray Bradbury e Gabriel Garcia Marquez. Mas é curioso como acabou por fazer parte do zeitgeist da época: naqueles anos, vários autores começaram a escrever histórias num Marte terraformado. Foi uma altura em que recebemos mais informação sobre o planeta – não só a confirmação de que Marte era estéril, mas também a noção de que seria muito improvável encontrar lá registos fossilizados de vida. Muitos escritores ainda adoram a ideia de Marte, mas como torná-lo habitável? Como lhe devolver a sua antiga magia?

VA: Ainda neste ano houve a antologia do George R. R. Martin e do Gardner Dozois [Old Mars].

IMD: Escrevi uma história para lá [The Queen of Night’s Aria].

VA: E como foi regressar ao planeta? A história faz parte do mesmo universo de Desolation Road?

IMD: Não. E não me senti tentado – a ideia não encaixava no contexto da antologia, que trata do Marte antigo, e não de um Marte terraformado. Mas é uma boa história (risos). É sobre esta personagem, um señor irlandês, um tenor de ópera, quando a Terra está a combater a Guerra dos Mundos mas ao contrário; ele vai para lá, para trás da frente de batalha, mas as coisas acabam por correr mal. É uma personagem terrível, um homem terrível; é tudo contado pelo seu companheiro, um tipo cheio de paciência. Gosto mesmo muito desta historia.

VA: Mas ainda gostaria de regressar ao Marte que desenvolveu?

IMD: Estou a trabalhar nisso. Tenho várias histórias de Desolation Road, e o Peter Crowder, editor britânico da PS Publishing, quer compila-las todas. Estou a escrever uma novela para esse projecto. A série ficará completa assim: Desolation Road, Ares Express, e esta colecção de histórias. Não precisarei de regressar de novo a esse universo.

(continua)

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