26 de novembro de 2013

2001 depois de 2001: O regresso à odisseia espacial de Kubrick e Clarke

2001: A Space Odyssey foi um dos primeiros filmes de que falei neste blogue, logo ao seu segundo mês de existência – um filme que vi pela primeira vez já bastante tarde (salvo erro, em 2009), mas que logo se tornou numa das mais fascinantes longas-metragens que tivera oportunidade de ver até então, ou que vi desde aí. Agora que o filme regressou, durante alguns dias, às salas de cinema portuguesas, tive enfim a oportunidade de o ver como ele merece: no grande ecrã, com som a condizer – e, mais do que nunca, importa regressar a este clássico de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke que mudaria a ficção científica cinematográfica para sempre.

De facto, a ideia original de Stanley Kubrick quando abordou Arthur C. Clarke nos anos 60, após a estreia de Dr. Strangelove, era desenvolver “o filme de ficção científica proverbial”, algo que se demarcasse do que se fizera no género até então. E, em bom rigor, foi isso que foi feito – ainda que de forma bastante improvável. O conto The Sentinel, de Clarke, serviu de base ao argumento do filme, e ao livro que foi escrito em simultâneo (e que seria publicado alguns meses após a estreia). Mas Kubrick decidiu fazer de 2001 algo diferente – uma experiência essencialmente visual, mais simbólica do que descritiva, mais estética do que narrativa.


Para isso, os melhores efeitos especiais feitos à época (e que, 45 anos volvidos, envelheceram como o Vinho do Porto) foram combinados com uma selecção cuidada de música clássica. A savana primordial faz-se acompanhar de Thus Sprach Zarathustra, de Richard Strauss – uma batida poderosa, evocativa, arrebatadora como convém ao momento, sem no entanto perder uma certa qualidade de enigma. O bailado espacial de "TMA-1" segue ao som de outro Strauss, de Johann, com a valsa The Blue Danube, perfeita para a lentidão coreografada dos movimentos nos abismos entre a Terra e a Lua. E a tradicional exposition da ficção científica deu lugar ao simbolismo e à abstracção – o espectador é desafiado a interpretar os símbolos e a construir o seu significado. A última sequência do filme, tão polémica pelo seu carácter abstracto, é disso um exemplo perfeito.


Que não se pense, porém, que na primazia do visual e do simbólico a narrativa se perdeu. Longe disso: reduzida ao seu mínimo denominador comum, a narrativa de 2001 apresenta-se pela combinação improvável de diálogo minimalista (banal, mesmo) e um vasto simbolismo, dos primeiros planos ao imprevisível desfecho. Dividido em quatro partes, 2001 começa por mostrar a “Madrugada do Homem”, ou o Homem antes de o ser – os primatas na savana primordial. Estes, pelo contacto com um objecto impossível descobrem a utilização do que os rodeia como ferramenta, como arma que lhes permite moldar e dominar o meio envolvente. O célebre split-cut, a mais longa elipse do cinema, descreve de forma tão perfeita como virtuosa a evolução humana na extraordinária transição do osso arremessado para a nave espacial em órbita: da savana pré-humana ao vazio que antecede as estrelas.


TMA-1, abreviatura de Tycho Magnetic Anomaly One, dá conta da descoberta que coloca todos os acontecimentos do filme em marcha: um objecto estranho, impossível mesmo, foi encontrado na Lua, “deliberadamente enterrado” quatro milhões de anos antes. Um monólito negro, idêntico àquele que levou os macacos primordiais a pegar num osso e a ver nele uma arma, que por uma emissão de rádio precipita a Humanidade a enviar a expedição Discovery One, para Júpiter, com cinco astronautas e o supercomputador HAL-9000 a bordo.


HAL será talvez a mais icónica das inteligências artificiais tornadas vilãs da ficção científica em todas as suas formas – contemporânea da AM criada por Harlan Ellison em I Have No Mouth, And I Must Scream, inspirou todas as variações do tema que se seguiriam, até mesmo à icónica GlaDOS do interactivo Portal (não deixa de ser curioso pensar que, nos rascunhos mais antigos de 2001, HAL teria uma voz feminina), também esta celebrizada na cultura popular pelo seu voice acting, à imagem do computador que a voz monocórdica Douglas Rain imortalizou no cinema. A forma como HAL elimina a tripulação é arrepiante – mas não menos do que o seu encerramento pelo sobrevivente Bowman, perdendo as suas capacidades cognitivas de forma progressiva até ao esquecimento.


Em termos práticos, e não sem ironia, o propósito de HAL era o mesmo de Bowman – levar a bom porto a missão da Discovery. E esta é concluída, de forma indefinida, na órbita de Júpiter, perante um novo monólito que irá servir de passagem para o maior salto dado pela Humanidade. “My God – it’s full of stars!”, diz um atónito Bowman no livro de Clarke; palavras que no filme deram lugar a um silêncio ominoso, ao qual se segue uma das mais arrebatadoras e abstractas sequências alguma vez feitas em cinema.
 

Quarenta e cinco anos depois da sua estreia, 2001: A Space Odyssey continua a ser um filme polémico e divisivo – e é também, com toda a justiça, considerado um dos melhores filmes de sempre pela crítica especializada. Uma prova do seu carácter incontornável e fundamental, tal como a sua persistência na cultura popular – mesmo apesar da sua elevada abstracção. Satirizado e parodiado, homenageado e aludido – muitas foram, e são ainda, as referências feitas a esta obra de Kubrick e Clarke, em meios tão distintos como a banda desenhada e os videojogos. A sua influência na indústria de efeitos especiais é evidente; e foi pedra de toque para cineastas tão populares como Steven Spielberg ou George Lucas.


Mais do que o “filme de ficção científica proverbial”, Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke criaram com 2001: A Space Odyssey filme de ficção científica perfeito e definitivo: em termos temáticos, a sua relevância só é comparável à sua ambição; em termos visuais, estabelece o padrão qualitativo para todo um género; e, no seu vasto legado, deixa ainda uma das mais memoráveis e influentes personagens que a ficção científica, cinematográfica ou literária, jamais produziu. Quando Ridley Scott diz que, com 2001, Kubrick “matou a ficção científica no cinema”, não é difícil notar, no evidente exagero do realizador britânico, um certo fundo de verdade: a fasquia foi colocada demasiado alta, entre as estrelas; e, até hoje, não foi ainda superada. Pergunto-me se algum dia será. 10/10

2001: A Space Odyssey (1968)
Realizado por Stanley Kubrick
Argumento de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, com base no conto The Sentinel
Com Keir Dullea, Douglas Rain, Gary Lockwood, William Sylvester e Daniel Richter
160 minutos

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