25 de outubro de 2013

Realismo mágico científico-ficcional, ou: o passado e o futuro em Desolation Road

Há poucos locais tão fascinantes na ficção científica como Marte - o Marte antigo, pré-exploração humana por telescópios e sondas e robots inteligentes que percorrem o solo avermelhado deste nosso vizinho do Sistema Solar e que revelam os seus segredos e a sua aparente esterilidade. Nada de homenzinhos verdes, de civilizações alienígenas, mais ou menos bárbaras, mais ou menos avançadas, espraiadas pelas margens dos canais que Percival Lowell tornou famosos. E, até ver, nada de travessia humana do abismo vazio que separa os dois planetas. Nada de terraformação, de desenvolvimento atmosférico, de landfall - a colonização humana do planeta dito vermelho continua a ser projecto de concretização improvável, se não mesmo onírica. Na imaginação, porém, Marte fervilha de vida - é o Barsoom explorado pelo espírito aventureiro de Edgar Rice Burroughs, é o lugar visitado pela nostalgia melancólica de Ray Bradbury nas suas célebres Crónicas. É o planeta onde autores tão diferentes como Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein, Philip K. Dick, Roger Zelazny, Lester Del Rey, Frederik Pohl, Kim Stanley Robinson colocaram as suas personagens e as fizeram viver as suas aventuras. E foi o planeta escolhido por Ian McDonald para se lançar na aventura da ficção científica, long form, com o seu vertiginoso romance de estreia, publicado em 1988: Desolation Road.

As referências não surgem aqui colocadas inteiramente ao acaso: as muitas influências de Desolation Road são visíveis ao longo de todo o texto, umas evidentes, outras obscuras. Quase em jeito de um híbrido entre The Martian Chronicles com o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez em One Hundred Years of Solitude e um certo tempero distópico-burocrático ao estilo visual de Terry Gilliam em Brazil (com uma cena do filme reproduzida na íntegra), Desolation Road conta a história da localidade homónima, de uma povoação surgida por puro acaso na orla do Grande Deserto, junto ao caminho-de-ferro da poderosa corporação ferroviária Bethlehem Ares Railroads. Uma localidade que passaria à margem da História, não fossem todos os destinos do planeta ter passado pelas suas ruas durante as suas poucas décadas de existência. E Desolation Road, a povoação, acaba por se revelar uma personagem tão fascinante como as várias personagens que a fundaram, que nela nasceram, que por ela passaram - e cujas acções, ordinárias ou extraordinárias, mudariam o mundo para sempre.

A história começa com um mosaico, mostrando em capítulos curtos e evocativos (adjectivo que será repetido) a sucessão de acasos e de coincidências que deu origem à povoação - da travessia do deserto de Dr. Alimantando, cientista e founding father de Desolation Road, à fuga de Mr. Jericho e dos seus "Exhalted Ancestors"; da deriva do clã Mandella até à chegada do errante Rajandra Das e do seu talento inato, quase mágico, para as máquinas; de Babooshka e do seu filho, Mikal, às famílias rivais Stallin e Tenebrae; dos trigémeos Gallacelli a Persis Tatterdemalion, literalmente caída do céu; de Marya Quinsana a Meredith Blue Mountain e à sua filha, Ruthie, com um poder extraordinário. À chegada acidental de Alimantando juntaram-se todas as outras, gente na sua essência simples e comum, e formou-se a comunidade - com uniões e desavenças, com descendência e mortes, com uma diáspora que geraria aventureiros, mártires, profetas, revolucionários, assassinos, oportunistas, idealistas, políticos, burocratas. Sempre na sombra de Desolation Road, do seu passado que se tornaria num futuro inescapável.

Fazendo um uso muito próprio da máxima de Clarke que diz (e não cito de cor) ser indistinguível da magia toda a tecnologia suficientemente avançada, McDonald constrói um Marte (ou Ares) futurista, terraformado pelo poder da tecnologia da ROTECH, repleto de máquinas prodigiosas, quase divinas na sua aparência - e, por vezes, na percepção. É um Marte multicultural, diversificado, a anos-luz do modelo "ocidental"  tão tradicional na ficção científica - com uma população de origens muito diversas, com crenças e cultos próprios, espalhada por locais tão diferentes e exóticos como o paraíso de Wisdom, o pesadelo burocrático de Kershaw, o antro de perdição de Belladonna. A prosa evocativa de McDonald dá uma vida própria e intensa a todos estes locais (e muitos outros) e às dezenas de personagens que os povoam, com maior ou menor protagonismo - e a combinação improvável entre elementos mais tradicionais da ficção científica com outros levantados do realismo mágico dá um efeito soberbo. Com a mesma energia nervosa e contagiante, McDonald consegue entusiasmar o leitor com uma partida de snooker ou com uma batalha entre um homem e um avatar de uma divindade; com um solo de guitarra capaz de chamar a chuva para o deserto ou com a ascensão de um burocrata para o seu pequeno poder. As imagens conjuradas são poderosas; a acção, essa, é formidável, por vezes quase cinematográfica na sua fluidez, quase mágica nas suas belíssimas metáforas, e até digna da banda desenhada em alguns momentos completamente over the top - que, longe de constituírem um problema, encaixam na perfeição neste extraordinário mosaico.

De certa forma, Desolation Road acaba por ser um romance sobre as pequenas coisas, e os pequenos acasos que acabam por nos definir e nos mudar. E esta ideia está construída de forma magistral sobre um mundo bem desenvolvido e fascinante nos seus muitos elementos, tanto naqueles que o autor apresenta como naqueles que ele faz questão de esconder, como que a dizer: há mais mundo para lá destas palavras. Como romance, seria sempre digno de todos os louvores; como primeiro romance, é um trabalho formidável de Ian McDonald - uma outra visão de Marte, merecedora de um lugar destacado ao lado de todas as outras visões que formaram, ao longo de mais de um século, o imaginário da ficção científica do Planeta Vermelho.

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