29 de outubro de 2013

Forbidden Planet: Shakespeare e Freud na Golden Age da ficção científica

Um dos problemas mais frequentes apontados à ficção científica é a sua rápida erosão perante o tempo. A questão aplica-se tanto à literária como à cinematográfica. Para muitos leitores contemporâneos, apreciadores de uma ficção cientifica mais complexa, mais multifacetada e com maiores exigências tanto em termos de narrativa como nos aspectos formais e na qualidade da prosa, boa parte das histórias da Golden Age (entre os anos 30 e 40) e do período que antecedeu a revolução da New Wave, poderão ter perdido o seu encantamento, sendo consideradas simplistas, previsíveis e de atributos duvidosos*. No cinema, arte visual por excelência, esta erosão torna-se ainda mais evidente por via da estética e dos efeitos visuais - e numa época de filmes hiper-realistas, assentes nas mais modernas computer-generated images e técnicas de motion-capture, os cenários, as maquetas, os props, a stop-motion e os "truques" de filmagem acabaram por cair em desuso, com as audiências contemporâneas a olhar para estes aspectos de filmes mais antigos da mesma forma que olhariam para outra qualquer relíquia de outros tempos em exibição num qualquer museu. Claro que essa estética muito própria (se quiserem: muito retro ou vintage) tem também um charme impossível de igualar nos dias que correm - não é por acaso que o xenomorfo original de Alien parece muito mais real e assustador do que as suas recentes iterações em CGI, ou que as marionetas de Jim Henson continuam a ser irresistíveis. E quanto esse charme retro surge acompanhado de uma história genuinamente boa e bem trabalhada, então o filme deixa de estar datado para se tornar intemporal. É o caso de Forbidden Planet.


Realizado em 1956 por Fred M. Wilcox (até então ligado aos filmes da Lassie) e com argumento de Cyril Hume baseado numa história de Irving Block e Allen Adler, Forbidden Planet apresenta aquilo que poderia ser uma história banal de exploração do espaço, tão típica da Golden Age, com um twist brilhante. A premissa é simples: a tripulação da United Planets Cruiser C57-D (uma flying saucer clássica) é enviada para Altair IV, planeta aparentemente habitável localizado a 16 anos-luz da Terra e no qual se perdera em circunstâncias misteriosas a nave Bellerophon e a sua tripulação vinte anos antes.


A comandar a expedição da C57-D está o Comandante J. J. Adams (um Leslie Nielsen excelente e a todos os níveis irreconhecível para as gerações que cresceram com as suas comédias nos anos 80 e 90); e, ao entrar na órbita do planeta, recebe um contacto impossível: o Dr. Edward Morbius (Walter Pidgeon), filólogo da Bellerophon, está vivo e dá indicações para que a C57-D não aterre em Altair IV e regresse à Terra. Como não podia deixar de ser, a aterragem terá mesmo lugar - e, no solo, Adams e a sua tripulação vão encontrar Morbius, o único sobrevivente da expedição original, e a sua filha, Altaira (Anne Francis), nascida naquele planeta sem qualquer contacto com a Terra.


A partir deste ponto, Forbidden Planet explora dois temas de forma distinta e com resultados surpreendentes. O primeiro, mais leve na abordagem (quando não cómico) mas não menos interessante, prende-se com o contacto de Altaira com a tripulação (toda ela masculina) da C57-D - ela, que nunca vira outros homens que não o seu pai, e que, isolada da civilização e do contacto social, desconhecia por completo quaisquer noções de romance ou de sexualidade. O segundo assenta no estranho desaparecimento da tripulação da Bellerophon, causado por um qualquer fenómeno inexplicável, e na prodigiosa tecnologia desenvolvida por Morbius durante o seu exílio, da qual se destaca Robby, o robot: uma inteligência artificial capaz de produzir qualquer artefacto (e, fiel ao espírito das Leis da Robótica de Asimov, incapaz de magoar humanos).


A relação entre a tecnologia de Morbius e a força misteriosa que atacou a Bellerophon, e que cedo atacará a C57-D, constitui o grande twist do filme. Inspirando-se na teoria psicanalítica freudiana e em elementos de The Tempest, de Shakespeare, Forbidden Planet constrói-se como um thriller meditativo muito inteligente, no qual nenhum elemento está colocado ao acaso ou apenas para efeito - todas as Chekov's Guns são disparadas no momento certo. A sua proposta ousada puxa pelo sense of wonder do espectador e recompensa-o com uma conclusão surpreendente. E a atmosfera já de si evocativa ganha contornos quase oníricos com a espantosa animação de Joshua Meador (cedido pela Disney) e com a banda sonora electrónica de Louis e Bebe Barron - algo banal nos dias que correm mas a todos os níveis inovadores na década de 50.


É certo que os 98 minutos de Forbidden Planet estão longe de esgotar as inúmeras possibilidades da premissa apresentada - o problema psicanalítico suscitado pela tecnologia presente daquele planeta poderia ser explorado de forma mais profunda, tanto pela sua própria natureza como pelo reflexo das várias personagens quando colocadas em conflito. E, claro, o filme não está livre de problemas - os desempenhos, ainda que regra geral sólidos, podiam estar mais trabalhados em alguns momentos (falta tensão no principal momento de acção), e o argumento não consegue evitar os infodumps da praxe. Nem por isso, porém, o filme de Wilcox e Hume deixa de trabalhar com clareza e orientação as ideias propostas - e o arrojo da sua componente visual e da sua inovadora banda sonora electrónica contribuem para dar a este filme a sua atmosfera singular, tornando-o numa obra especialmente influente e num dos marcos da ficção científica cinematográfica. 8.6/10

Forbidden Planet (1956)
Realizado por Fred M. Wilcox
Argumento de Cyril Hume com base numa história de Irving Block e Allen Adler
Com Leslie Nielsen, Walter Pidgeon, Anne Francis, Warren Stevens, Jack Kelly e Richard Anderson
98 minutos

*Numa nota pessoal, estou longe de defender isto - e, regra geral, é com um enorme gozo que leio (e vejo) a ficção científica deste período.

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