23 de agosto de 2013

The Left Hand of Darkness, ou a definição de humanidade para lá do género

Em 1969 e 70, Ursula K. Le Guin tornou-se na primeira mulher a vencer com o mesmo livro os prémios Nébula e Hugo (respectivamente). O livro, esse, ainda hoje é considerado um clássico na ficção científica e, para muitos, um dos primeiros exemplares de um romance feminista de ficção científica: The Left Hand of Darkness. Mas mais do que feminista, The Left Hand of Darkness é uma inteligente e fascinante desconstrução da identidade sexual e da dualidade que daí decorre, enquadrada numa história mais profunda sobre o que é de facto a amizade, o amor - e, de certa forma, o que define cada indivíduo enquanto humano. 

Em termos narrativos, Le Guin enquadrou The Left Hand of Darkness no universo ficcional do "Hainish Cycle" - onde se encontram obras tão diversas como o seu primeiro romance publicado, Rocannon's World (1966), The Dispossessed (1973) ou The Word For World Is Forest (1974), para além de vários contos. O protagonista, Genly Ai, é um humano enviado pelo Ekumen - uma federação económica e cultural de várias dezenas de mundos povoados pela Humanidade - para o planeta Gethen com o propósito de convidar as nações daquele planeta a aderir ao colectivo. Nos idiomas locais, "Gethen" significa "Inverno", o que não é por acaso - todo o planeta parece mergulhado numa longa e cruel era glacial, num Inverno quase permanente que moldou os seus povos e as respectivas culturas. Mas Genly Ai deparar-se, ao chegar àquele planeta gélido, com algo ainda mais estranho: ao contrário do que acontece com os seres humanos em todos os outros planetas do Ekumen, em Gethen, a dualidade sexual entre masculino e feminino não existe por um imperativo biológico: todos os indivíduos são assexuados excepto durante um período de poucos dias, designado por kemmer, no qual por interacção hormonal adquirem um dos géneros - qualquer um. Cada indivíduo pode, assim, ser pai ou mãe, ou mesmo pai e mãe. 

O leitor acompanha a descoberta deste mundo pelos olhos do estranho Genly Ai, olhado pelos habitantes de Gethen com relativa curiosidade, quando não como aberração (de acordo com os termos locais, o emissário estaria em kemmer permanente - uma condição invulgar, mas não impossível). E é com Genly Ai que se revela perante o leitor um mundo tão estranho como fascinante, onde nunca ocorreram guerras convencionais (mas a intriga política abunda), onde o progresso tecnológico está praticamente estagnado e onde a ausência de aves poderá ser a explicação para nunca se ter desenvolvido uma máquina voadora (uma noção tão simples como extraordinária, bem reveladora da qualidade superlativa do worldbuilding de Le Guin). A estranheza e as dúvidas de Genly Ai são também as do leitor - e é fascinante como a autora não só constrói todo aquele mundo social como lhe dá vida. Sem no entanto se esquecer do enredo, da história que pretende contar - que ganha contornos particularmente fortes na interacção e no relacionamento do protagonista com Estraven, um antigo ministro de um dos reinos de Gethen, entretanto caído em desgraça. É em Estraven que Genly vai encontrar o espelho perfeito para a sua estranheza - quando as circunstâncias vão obrigar a que descubram juntos o que é a Humanidade para lá das diferenças individuais, de género ou quaisquer outras. A última parte de The Left Hand of Darkness, mais do que uma história soberba de sobrevivência, uma narrativa mais profunda sobre aquilo que nos une.

Uma história porventura tão relevante hoje como no seu tempo, num mundo complexo na sua vertente social e bastante rico em termos mitológicos - sem que a autora precise em algum momento de descrições estafadas para lhe dar vida. Também na prosa The Left Hand of Darkness brilha, ou não fosse Le Guin uma das grandes prosadoras que a ficção científica já conheceu - é fluída, rica no detalhe, eficiente na sugestão. Mais de quarenta anos volvidos sobre a sua publicação original, The Left Hand of Darkness continua a justificar em pleno o estatuto de "clássico". Se há leituras "obrigatórias" na ficção científica, esta será sem dúvida uma delas. 

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