12 de julho de 2013

Quando a mitologia e a fantasia se entrelaçam: The Broken Sword

1954 foi um ano muito especial para a fantasia literária, tendo sido publicadas duas obras que cedo se tornariam em clássicos incontornáveis do género: o primeiro, The Fellowship of the Ring, do académico britântico J. R. R. Tolkien, universalmente conhecido e aclamado; o segundo, The Broken Sword, do autor norte-americano Poul Anderson. A coincidência das datas e o facto de ambas as obras irem beber directamente à imensa fonte das mitologias e dos textos escandinavos antigos levou a que desde cedo as comparações se tornassem inevitáveis; a crítica comparativa de Michael Moorcock (que sempre teve o romance de Anderson como uma referência para a sua própria fantasia literária) tornou-se célebre, e fez escola perante a tremenda popularidade da Terra Média, que o mundo de faerie que o norte-americano desenvolveu com mestria nunca conseguiu acompanhar. Mas a verdade é outra: se à superfície ambas as obras parecem ter muitas semelhanças, um mergulho mais profundo mostra quão distintas são, e como ambos os autores, bebendo na mesma fonte, conseguiram desenvolver mundos secundários tão distintos e com propósitos tão diversos; como tal, comparar The Broken Sword a The Lord of the Rings* torna-se num exercício não só irrelevante, como também injusto para ambas as obras.

Mas sobre Tolkien e respectivas comparações falarei em Setembro; hoje, o tema é The Broken Sword.

Poul Anderson não se limitou a inspirar-se nas mitologias; ele criou o seu próprio universo ficcional  centrado numa Inglaterra em plena era dos Vikings, com a guerra entre o Aesir e os Jotuns a pairar no horizonte e a inevitabilidade do Ragnarok a projectar uma sombra em todas as terras de faerie; o panteão nórdico está presente, tal como o irlandês - ambos considerados pagãos e em recuo perante o avanço do cristianismo pelo norte da Europa. Outras mitologias são mencionadas (a grega, por exemplo), tal como criaturas mitológicas e fantásticas de várias partes do mundo, de faunos e demónios chineses à Wild Hunt - criando um mundo rico em textura e em diversidade, no qual os Homens convertidos ao "White Christ" vivem ao lado de um mundo fantástico que desconhecem, e que não podem sequer vislumbrar.

É neste mundo que The Broken Sword arranca, com Orm the Strong a conquistar um território em Inglaterra e a se fixar na ilha; lá, converte-se ao cristianismo para desposar Aelfrida, e juntos começam a constituir uma família. Mas Imric, elfo e senhor do domínio de Elfheugh, toma conhecimento do nascimento do primogénito de Orm, e decide interferir, trocando a criança por um changeling híbrido de elfo e troll, e criando a criança humana entre os Elfos. O que Imric não sabe é que, sem querer, os seus actos colocaram-no a ele e ao seu povo numa cruzada de vingança contra Orm - e que tanto o Aesir como os Jotuns estão envolvidos, utilizando os povos de faerie nos seus esquemas. Ao jovem Skafloc os deuses enviam uma espada antiga, cujo tremendo poder só pode ser comparado à maldição que a sua lâmina encerra, e que foi quebrada muitos anos antes - e apenas o seu criador, o gigante Bolverk, a poderá voltar a forjar na hora mais desesperada.

Anderson mostra não só um vasto conhecimento das várias mitologias europeias, como também um enorme talento para delas tirar partido no desenvolvimento de uma aventura sombria num mundo povoado por toda a sorte de criaturas fantásticas (a passagem do fauno, por exemplo, é excepcional). A narrativa tem um ritmo narrativo extremamente rápido (escrito hoje por um autor contemporâneo de fantasia, The Broken Sword não teria menos de 800 páginas - se não fosse mesmo uma série), cuja prosa económica e eficaz nem por isso deixa de ter poesia e de evocar as sagas antigas (problemas menores, como a repetição de algumas expressões, não interferem no encantamento). A edição que li, da Gollancz, recuperou o texto da edição original de 1954 - e não da edição revista de 1971 -, mostrando um autor ainda a descobrir a sua voz, mas com uma visão muito concreta da história que pretende contar, sem em momento algum se desviar do seu propósito. 

Não há dúvida de que The Broken Sword merece um lugar no panteão da fantasia literária - ao lado de autores como Tolkien, Le Guin, Pullman, Martin e muitos outros que ao longo dos anos deram forma e variedade a um género com raízes milenares. Merece sair da sombra de Tolkien, sob a qual nunca mereceu estar, e ser lida e relida hoje, pelos méritos próprios da sua extraordinária narrativa e pelo fascinante mundo que Anderson tece com as mitologias antigas. Para os leitores de fantasia contemporâneos será sem dúvida uma leitura recomendada. 


*Há alguma ironia aqui: se há uma obra de Tolkien passível de ser comparada com The Broken Sword, essa obra seria The Children of Húrin

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