10 de maio de 2013

Lisboa no Ano 2000: A Lisboa real que nunca existiu

Talvez Lisboa no Ano 2000, antologia organizada por João Barreiros e editada no ano passado pela Saída de Emergência, seja uma resposta mais ou menos (in)consciente à tendência em ascensão do steampunk e da sua estética muito própria, que se afasta das inspirações Vitorianas para idolatrar Tesla e a sua promessa de electricidade abundante e ilimitada. À luz dessa perspectiva, esta antologia é sem dúvida um objecto singular e merecedor de toda a atenção, dando forma com coerência (mas não sem falhas) a um fascinante universo no qual a electricidade, e não o vapor, se tornou na tecnologia dominante na passagem do século XIX para o século XX – mantendo tal domínio durante o século, até à viragem para o ano 2000.

Mas mais do que uma reinvenção dos alicerces conceptuais do steampunk para algo novo e imaginativo, Lisboa no Ano 2000 é uma obra indubitavelmente portuguesa, identidade que assume do primeiro ao último conto. É certo que o título pode denunciar a intenção; mas a Lisboa referida poderia ser um mero cenário, passageiro e efémero. Não o é, de todo; de conto para conto, a Lisboa electrificada imaginada por João Barreiros e desenvolvida pelos outros catorze autores da antologia ganha vida, adquire alma, e torna-se numa espécie de personagem oculta mas constante, uma presença que passa de episódio para episódio e que deixa sempre a sua marca indelével.

Isto, contudo, não significa que as 17 histórias que compõem Lisboa no Ano 2000 sejam uniformes em termos quantitativos. Longe disso; e a verdade é que, no seu todo, a antologia é mais do que a soma individual das suas partes. Isto porque a execução da ideia global, a criação de um universo abrangente, partilhado, de uma Lisboa alternativa na viragem do milénio, funciona melhor do que o micro-universo de cada conto, analisado de forma individual – e alguns elementos em vários contos que desafiam a unidade conceptual e cronológica da antologia, o que por vezes se revela problemático. Não que os vários contos sejam maus – longe disso, na verdade. Na sua maioria, as várias premissas e os diferentes conceitos que exploram são no mínimo interessantes, e no máximo entusiasmantes. Nos três contos de João Barreiros (O Turno da Noite, que abre a antologia, Tratado das Paixões Mecânicas e Chamem-nos Legião – ainda que este último pudesse beneficiar de uma nova revisão) nota-se uma escrita cuidada, atmosférica, capaz de desenvolver as premissas imaginativas do autor de forma visualmente forte – e o desfasamento qualitativo entre a escrita de Barreiros e a sólida escrita da generalidade dos autores é visível, e seria porventura mais prejudicial à unidade da antologia não fosse a sua forte coesão temática e conceptual (uma vez mais, apesar de algumas falhas). Há excepções, naturalmente – e saltam à vista as narrativas de Telmo Marçal e Guilherme Trindade, capazes de unir um certo arrojo conceptual (e, no caso da história de Marçal, narrativo) a uma componente formal que se destaca das demais. Mas falemos um pouco de cada conto:


O Turno da Noite, de João Barreiros: Publicado originalmente no número 10 da Revista “Bang!” (Junho de 2011), O Turno da Noite dá o mote à antologia e estabelece a atmosfera de uma Lisboa firmemente ancorada na energia eléctrica que a alimenta, mas onde a divisão entre as várias classes sociais é vincada, mesmo nos transportes públicos. No caso, no Trans-sub-Tejo, o comboio que une as duas margens do Tejo por baixo do leito do rio). A escrita cuidada e ritmada de João Barreiros recria de forma brilhante a atmosfera soturna dos túneis, e o ritmo lento do conto envolve os leitores na sua narrativa. Ainda que o desfecho da premissa possa ser potencialmente problemático, o ambiente e o tom estabelecidos compensam em larga medida quaisquer limitações conceptuais. *****

Venha a Mim o Vosso Reino, de Ricardo Correia: Tarefa ingrata, a de suceder a João Barreiros – e ainda que os fundamentos da premissa deste conto de Ricardo Correia sejam interessantes, estão subaproveitados numa narrativa que preza antes elementos tão implausíveis como o das “freiras-ninja” (sem qualquer explicação e a destoar de forma quase agressiva com o tom e a natureza da antologia). A escrita mediana não ajuda, ainda que neste ponto uma revisão mais prolongada pudesse talvez ter ajudado. *

Os Filhos do Fogo, de Jorge Palinhos: No terceiro conto, Jorge Palinhos aborda um conceito fascinante de forma muito eficiente. O ritmo da narrativa é rápida, mas nem por isso deixa de ser visualmente rica, e as várias pistas que o autor vai deixando ao longo do texto desenvolvem o enigma sem o desvendar demasiado cedo – ainda que o final se revele um tanto o quanto apressado, e mesmo anticlimático. Não sendo brilhante, a escrita é sólida. ***

Dedos, de AMP Rodriguez: É uma pena que a riqueza conceptual deste conto de AMP Rodriguez não seja acompanhado por uma escrita igualmente rica – mas a verdade é que o texto apresenta-se errático, com alguns problemas de ritmo. A introdução de francesismos não ajuda, sendo difícil enquadrar a sua origem e, por isso a sua necessidade. A premissa talvez seja uma das melhores do livro, mas necessitaria de uma revisão mais detalhada. **

As Duas Caras de António, de Eduardo Silva: Um conto interessante explorado com um óptimo ritmo narrativo. O leitor acompanha Frank Schertz, ou melhor, António Piedade, numa aventura de espionagem pela Lisboa electrificada. Ainda que nenhum dos twists seja excepcional, estão em geral bem conseguidos – sobretudo o último – e dão à história um sentido de humor muito próprio, que a escrita sólida permite consolidar. ***

Electrodependência, de Ana C. Nunes: Electrodependência apresenta uma das premissas mais interessantes da antologia, e a autora desenvolve-a num conto curto e directo, com um certo tom noir, que explora a electricidade pelo ponto de vista da droga e da dependência. As personagens principais estão bem desenvolvidas, e o enredo está não só plausível, como muito bem trabalhado, com um dos melhores finais desta Lisboa. Em termos formais, talvez o texto pudesse beneficiar de uma última revisão, mas nem por isso afasta o leitor de uma história notável. ****

Nanoamour, de Ricardo Cruz Ortigão: Os dois autores que se escondem por detrás do pseudómino Ricardo Cruz Ortigão introduziram no Lisboa no Ano 2000 o tema do romance – ou, mais especificamente, do amor electro-induzido. O conceito, sem dúvida interessante, é apresentado com o twist quase clássico das poções amorosas – e é uma pena que o final divertido seja tão precipitado, ou que as personagens não estejam um pouco mais desenvolvidas. **

Energia das Almas, de João Ventura: Se quisermos olhar para Lisboa no Ano 2000 como ficção científica, o conto Energia das Almas, de João Ventura, será sem dúvida o seu exemplar de hard science fiction. Pegando na premissa dos espectros desenvolvida por João Barreiros no primeiro conto, Ventura explora com rigor – e talvez com um ligeiro excesso de jargão – a teoria de MacDougall do peso das almas e conceitos da relatividade de Einstein numa história curta mas muito interessante. É uma pena que as personagens não sejam igualmente interessantes, e que o narrador se revele um tanto ou quanto errático. ***

Fuga, de Joel Puga: A história de Tércio, um escritor frustrado, é sem dúvida uma narrativa atmosférica e um tanto ou quanto irónica, perfeitamente encaixada no tom geral desta Lisboa. O autor aproveita o ambiente e a premissa da qual parte para elaborar uma crítica mordaz ao mercado editorial e à literatura “de massas”. Fuga é um conto bem escrito q.b., mas o destaque que coloca na sua componente crítica fá-lo afastar-se da carga conceptual de outros contos da antologia. ***

Tratado das Paixões Mecânicas, de João Barreiros: A segunda entrada de Barreiros na antologia é um conto formidável de um ponto de vista tanto conceptual como filosófico. A imagem da autofábrica a atravessar o mar e a tentar implantar-se nas praias da Caparica é brilhante, e está explorada de forma simultaneamente sombria e mordaz – mas é na individualidade nascente de Unidade5 (e na futilidade dos seus esforços), e na forma como os vários elementos incongruentes são encaixados com mestria, que reside a força narrativa deste conto. O epílogo talvez fosse desnecessário, aligeirando o tom soturno do enredo, mas nem por isso estraga o efeito conseguido pela escrita praticamente irrepreensível de João Barreiros. *****

O Obus de Newton, de Telmo Marçal: Telmo Marçal consegue desenvolver com mestria uma narrativa de tom coloquial, viva e irrequieta, com uma escrita que roça o cómico sem nunca perder a graça e a elegância que lhe são características. O que, reconheça-se, não é para todos. Mas não fica por aí; ao longo de vários episódios entre o Brasil e Lisboa, Marçal tece uma das melhores tramas da antologia, com personagens inesquecíveis e revoltas excepcionais, entre agentes especiais e canibais. *****

Ex-Machina, de Michael Silva: Explorando o tema da religião eléctrica de forma singular, Michael Silva elabora uma trama densa e atmosférica, com uma escrita enriquecida por termos coloquiais bem trabalhados e um enigma que se vai adensando a cada página. Talvez o final seja um pouco precipitado, mas nem por isso deixa de ser muito interessante de um ponto de vista conceptual e sólido de uma perspectiva “visual”. ****

A Rainha, de Pedro Vicente Pedroso: A submissão de Pedro Vicente Pedroso quase se poderia definir como um encontro entre Moby Dick e a electrosfera em pleno Estuário do Tejo – e a premissa encaixa no conceito global da antologia na perfeição, com imagens estimulantes e uma acção bem desenvolvida e um final bastante sólido, ainda que nem por isso inesperado. Como outros, talvez pudesse beneficiar de uma maior revisão na escrita. ***

Taxidermia, de Guilherme Trindade: Para retirar o óbvio do caminho: excluídos os contos de João Barreiros, este Taxidermia, de Guilherme Trindade é a todos os níveis o melhor conto da antologia – conceptualmente rico, encaixado na perfeição no universo partilhado, com um enredo estimulante desenvolvido por uma escrita muito sólida. O final, esse, é soberbo, e confirma todas as qualidades de um conto excepcional. *****

Quem Semeia no Tejo, de Pedro G.P. Martins: A grande força de Quem Semeia no Tejo reside na sua ligação conceptual ao primeiro conto de João Barreiros – ancorando-o firmemente ao ambiente global da antologia. Ainda assim, e apesar da solidez da escrita, a narrativa não flui da melhor maneira, e o final um tanto ou quanto precipitado está longe de ser satisfatório. **

Coincidências, de Pedro Afonso: É curioso que o ponto forte deste conto de Pedro Afonso é também a sua maior fraqueza: a forma como se enquadra no universo conceptual de toda a antologia. Se tematicamente está próximo de alguns contos (Taxidermia será porventura o mais evidente), alguns elementos suscitam sérios problemas na cronologia interna da antologia (Setúbal? Herdeiros reais?). Ainda assim, a narrativa bem estruturada e a escrita sólida faz de Coincidências uma entrada muito interessante nesta antologia. ***

Chamem-nos Legião, de João Barreiros: A terceira parte do tripartido O Que Escondem os Abismos encerra esta antologia – uma história em duas partes que seguem paralelas até ao momento em que se cruzam. Ainda que de um ponto de vista conceptual Chamem-nos Legião seja um conto muito forte – elementos como o Golem, o Relojoeiro Cego e as exorcistas são fascinantes – e que João Barreiros faça um regresso muito interessante a um tema recorrente na sua ficção científica (os brinquedos), no seu todo não é tão interessante e tão sólido como O Turno da Noite ou Tratado das Paixões Mecânicas. Nem por isso, porém, deixa de ser uma excelente conclusão para esta antologia. ****

4 comentários:

Anónimo disse...

E Barreiros até inventa uma nova cor, o azul-esmeralda. :-)

João Campos disse...

Não reparei.

Anónimo disse...

Inventa nada. Apesar de estarmos mais que habituados às esmeraldas perfeitas cuja cor é um verde reminiscente das camisolas do Sporting, a verdade é que as esmeraldas podem ter tons que vão do verde-amarelado ao verde-azulado. Creio que seria a este último que o João Barreiros se referia.

João Campos disse...

Os caros anónimos decerto saberão mais de esmeraldas do que eu (que, de resto, nem reparei no detalhe).