30 de abril de 2013

A natureza e a civilização em Mononoke-hime

Algures, existe um território natural verdejante - se não for uma floresta, incluirá decerto uma floresta -, repleto de recursos, onde a Natureza é rainha, e onde vive uma bela jovem, feliz e livre junto das criaturas selvagens com as quais cresceu, em harmonia perfeita com o mundo natural que a envolve. Um mundo de pureza e virtude primordial, que contrasta de forma agressiva com a civilização tecnológica que os homens instalam nas imediações - começando aos poucos a destruir a floresta para explorar os seus recursos (e, quase sempre, enriquecer no processo). Segue-se uma guerra entre a natureza e a civilização, na qual a primeira, maléfica, triunfa sobre a segunda. Mas a bela jovem e um dos capitães do mundo civilizado apaixonam-se, e ele vai ver o mundo pelos olhos dela; e, apercebendo-se da maldade da civilização, revolta-se contra ela, recupera o mundo natural e fica com a jovem. Este resumo mal amanhado serve para a história do bom selvagem, contada ad nauseam no cinema, a partir de inúmeras perspectivas tão diferentes como semelhantes - sejam nativos norte-americanos, tribos africanas ou raças alienígenas num planeta distante. À partida, e numa perspectiva extremamente superficial, Mononoke-hime, filme de 1997 realizado Hayao Miyazaki, parece encaixar neste molde que já serviu para tantas histórias. Mas parece, apenas - pois em momento algum opta pelo conforto de uma moral instalada e de tropes narrativas convencionais.


De certa forma, Mononoke-hime (na versão inglesa, Princess Mononoke) é uma história sobre um tempo de mudança, num mundo onde em tempos os deuses da Natureza caminharam por entre as criaturas vivas, tendo desaparecido e alcançado o estatuto de lendas distantes. Mas uma criatura saída de um mito irrompe pelo território da aldeia do protagonista, o jovem príncipe Ashitaka. Destemido, Ashitaka enfrenta o tremendo demónio, o corrompido deus-javali Nago, que destrói tudo à sua passagem e que ameaça a sua aldeia. Mas apesar de derrotar a besta, vê-se afligido por uma maldição que, a prazo, consumirá a sua vida. Com o propósito de procurar uma forma de levantar a maldição, deixa a sua aldeia e parte para o Ocidente longínquo, em busca da floresta do Espírito da Floresta (referido como o Deus Veado), uma divindade natural que de dia assume a forma quimérica de um Qilin e de noite, a de um gigantesco Daidarabotchi (Nightwalker). Mas nessa terra distante vai encontrar um conflito emergente entre as forças da Natureza -com San, uma jovem rapariga criada pelos lobos da divindade Moro, a servir de avatar da vigança da floresta - e a aldeia de Lady Eboshi, que explora o ferro da região e se protege com recurso a armas de fogo e a explosivos (com a aldeia, por seu lado, a estar ameaçada pelos samurais de Lord Asano).


Onde Mononoke-hime se destaca dos outros filmes do seu género (para além dos elementos fantásticos - já lá iremos) é no tom de cinzento que atravessa toda a narrativa. O conflito entre Eboshi e San, simbolizando respectivamente a civilização tecnológica e a Natureza, é-nos sempre mostrado pelo ponto de vista de Ashitaka, que se envolve na disputa procurando encontrar uma solução de compromisso, sem querer tomar partido. Toda a história assume, desde os primeiros minutos, contornos trágicos que nunca se desvanecem: do deus-javali caído ao príncipe exilado,


Com todas as preocupações ecológicas de Mononoke-hime, não há no filme uma componente moralizadora a sobrepor-se na narrativa; ambos os lados são vistos tanto pelas suas qualidades como pelos seus defeitos - e, acima de tudo, pela incapacidade que um e outro revelam de tentar encontrar uma forma de coexistirem de forma a preservar as suas identidades.


E, claro, Mononoke-hime brilha pelos seus extraordinários elementos fantásticos, que Miyazaki utiliza com génio para dar mais força à narrativa. O mundo de Ashitaka, San e Eboshi é um mundo onde os seres humanos convivem lado a lado com o sobrenatural, com as forças primordiais da natureza - que se manifestam em lobos e javalis conscientes, em deuses extraordinários e muito pouco convencionais, em maldições e poderes prodigiosos, e em criaturas extraordinárias como os kodama. Todas estas criaturas e os cenários maravilhosos onde se movimentam são trabalhados numa animação de qualidade excepcional, riquíssima na cor e na expressividade, com grande atenção ao detalhe.


Mononoke-hime não é considerado um dos melhores filmes de animação japonesa por acaso - a sua animação excepcional será sempre merecedora de destaque, e a subversão inteligente que faz a uma narrativa para todos os efeitos convencional enriquece a sua mensagem e confere-lhe uma força narrativa ímpar. As suas personagens cativantes num mundo fantástico especialmente imaginativo e os contornos trágicos do enredo são as cerejas no topo de um bolo de grande qualidade, preparado por aquele que será talvez o mestre maior do seu ofício. Talvez Mononoke-hime não seja "a" grande obra de Miyazaki, mas é sem dúvida uma obra-prima. 8.9/10

Mononoke-hime (1997)
Realização e argumento de Hayao Miyazaki
Com Yōji Matsuda, Yuriko Ishida, Yūko Tanaka, Kaoru Kobayashi, Tsunehiko Kamijō, Akihiro Miwa e Hisaya Morishige
133 minutos

3 comentários:

Rita Santos disse...

E agora para um comentário completamente random, se alguma vez fizesse uma tatuagem seria ou dos kodama ou dos susuwatari (os pequenos felpudos negros).

Rita Santos disse...

Sendo os felpudos da Chihiro.*

João Campos disse...

Os kodoma dariam um excelente desenho. Os outros não sei - ainda não vi Chihiro.