8 de março de 2013

Dangerous Visions em retrospectiva (4): As "visões perigosas" de Harlan Ellison

What you hold in your hands is more than a book. If we are lucky, it is a revolution. Assim começa Thirty-two Soothsayers, a introdução de Harlan Ellison a Dangerous Visions, antologia que editou em 1967. E, para todos os efeitos, o objectivo de Ellison foi dar continuidade a uma revolução, ao movimento "New Wave" da ficção científica que mudaria para sempre o género em termos temáticos, narrativos e estilísticos. Em termos literários, se quisermos. À distância dos mais de 40 anos passados desde a publicação desta revolução, talvez seja difícil avaliar o impacto que teve - temas como o sexo, a homossexualidade ou a experiência religiosa já perderam a novidade, e porventura a polémica, no que à literatura diz respeito. Dos temas abordados nos mais de 30 contos publicados na antologia, talvez apenas a violência o incesto e o cancro, abordados por Harlan Ellison, Theodore Sturgeon e Norman Spinrad respectivamente, mantenham um relativo grau de polémica. 

Essa questão, aliás abordada de forma muito inteligente na introdução de Adam Roberts para a edição recente da Gollancz na colecção "SF Masterworks"*, fica por isso mais ou menos arrumada: de um ponto de vista meramente temático, as visões perigosas de Ellison perderam um pouco do seu perigo. Que não se pense, porém, que a antologia se tornou por isso datada - e se tal não aconteceu, isso dever-se-á à qualidade superlativa da ficção seleccionada por Ellison, que convidou autores consagrados, em ascensão e mesmo estranhos ao género e os desafio a ser ousados e a apresentar o seu melhor. Por isso, mesmo que os temas dos vários contos não sejam hoje novos ou chocantes (foram-no na sua época, e não é difícil fazer essa contextualização), é fácil deliciarmo-nos com a alucinação de Philip K. Dick, o twist genial de Poul Anderson, a antecipação de John Brunner ou o horror do próprio Harlan Ellison. Mesmo que não se goste de todos os trabalhos - eu não gostei de todos, longe disso -, é impossível não reconhecer a qualidade da escrita, a originalidade da - narrativa, a pura força da imaginação de cada um dos 32 autores que contribuíram para este livro. 

Na segunda introdução da edição original, Isaac Asimov (que não quis participar na antologia com ficção) começa por dizer: This book is Harlan Ellison. O que está muito certo: Dangerous Visions é, de facto, Harlan Ellison. Isso não se deve apenas ao conceito ou à selecção de contos, mas também - e, diria, sobretudo - ao cuidado trabalho de edição de Ellison. No total, seleccionou 32 contos de 33 autores diferentes - e não só pediu a cada autor um curto posfácio para cada trabalho, como também escreveu uma introdução para cada um deles. Não falo de notas biográficas, mas de textos personalizados e acima de tudo pessoais. De histórias de como o editor conheceu o trabalho do autor. De como chegou até ele. De rascunhos rejeitados. De aventuras partilhadas. De amizade, em muitos casos. O tom é laudatório, claro - mas é também descontraído, bem humorado, provocador a espaços. Num caso, a introdução é maior do que o próprio conto - e, pasme-se, é tão ou mais divertida do que aquele. 

Et pour cause: não mencionei nos artigos anteriores o conto de Harlan Ellison em Dangerous Visions. A omissão foi intencional: sendo Ellison o editor da antologia, pareceu-me apropriado deixar o seu conto para o fim. E The Prowler in the City at the Edge of the World é um conto soberbo, um dos melhores da antologia (levou-me a comprar quase de imediato uma pequena antologia do autor): uma continuidade ao desafio que o próprio lançou a Robert Bloch de escrever uma história com base no seu (de Bloch) conto Yours Truly, Jack the Ripper, na qual o lendário assassino fosse parar ao futuro. Bloch aceitou o desafio e submeteu A Toy for Julliette; e Ellison escreveu-lhe uma sequela a todos os níveis brilhante, no qual Jack se vê num futuro esterilizado, amoral e nihilista. Sobre o enredo, não me vou alongar - é formidável, e a escrita rápida, incisiva e pormenorizada de Ellison confere à narrativa um ritmo vertiginoso sem descurar uma caracterização pormenorizada de Jack, da Cidade e dos seus habitantes, e uma carga emocional especialmente forte.

Em jeito de conclusão: ao longo das últimas semanas, publiquei vários artigos sobre alguns dos contos que compõem Dangerous Visions. As escolhas incidiram sobre aqueles de que mais gostei, claro, mas não foram os únicos que chamaram a minha atenção - apenas os que mais se destacaram. Fazer uma resenha a cada um dos 32 contos seria exaustivo, pelo que, para completar a análise a esta prodigiosa antologia, segue abaixo a lista completa dos contos e da minha avaliação a cada um deles seguindo o (odioso) método das estrelinhas - no caso, dos asteriscos. E, claro, fica a recomendação de leitura. Dangerous Visions poderá talvez não parecer ao leitor do século XXI um livro revolucionário, ou mesmo perigoso; mas será sempre um livro de grande qualidade, com um conjunto excepcional de autores, de temáticas e de estilos que só por si merecem uma leitura atenta. E, mais do que isso, é uma parte fundamental da história da ficção científica enquanto género literário. 
  • Evensong, de Lester del Rey. ***
  • Flies, de Robert Silverberg. *****
  • The Day After the Day the Martians Came, de Frederik Pohl ***
  • Riders of the Purple Wage, de Philip José Farmer ****
  • The Malley System, de Miriam Allen deFord ***
  • A Toy for Juliette, de Robert Bloch ****
  • The Prowler in the City at the Edge of the World, de Harlan Ellison *****
  • The Night That All Time Broke Out, de Brian W. Aldiss ****
  • The Man Who Went to the Moon — Twice, de Howard Rodman **
  • Faith of Our Fathers, de Philip K. Dick *****
  • The Jigsaw Man, de Larry Niven ***
  • Gonna Roll the Bones, de Fritz Leiber ****
  • Lord Randy, My Son, de Joe L. Hensley ***
  • Eutopia, de Poul Anderson *****
  • Incident in Moderan, de David Bunch ***
  • The Escaping, de David R. Bunch **
  • The Doll-House, de James Cross ***
  • Sex and/or Mr. Morrison, de Carol Emshwiller *
  • Shall the Dust Praise Thee?, de Damon Knight ***
  • If All Men Were Brothers, Would You Let One Marry Your Sister?, de Theodore Sturgeon *****
  • What Happened to Auguste Clarot?, de Larry Eisenberg *
  • Ersatz, de Henry Slesar **
  • Go, Go, Go, Said the Bird, de Sonya Dorman ***
  • The Happy Breed, de John Sladek ****
  • Encounter with a Hick, de Jonathan Brand **
  • From the Government Printing Office, de Kris Neville ***
  • Land of the Great Horses, de R. A. Lafferty ****
  • The Recognition, de J. G. Ballard ****
  • Judas, de John Brunner *****
  • Test to Destruction, de Keith Laumer ****
  • Carcinoma Angels, de Norman Spinrad *****
  • Auto-da-Fé, de Roger Zelazny ****
  • Aye, and Gomorrah, de Samuel R. Delany ****
*Esta edição, cuja capa ilustra o artigo, inclui várias introduções: para além das originais de Asimov e de Ellison, inclui uma de Adam Roberts, outra de Michael Moorcock e ainda uma outra, de 2002, também de Ellison.

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