1 de março de 2013

Dangerous Visions em retrospectiva (3): Contos de John Brunner, Keith Laumer, Norman Spinrad e Samuel R. Delany

Dangerous Visions. Again (pun intended). É difícil falar de uma vez só sobre uma antologia com tantos contos (33) tão diferentes como aqueles que compõem esta célebre e polémica colectânea editada por Harlan Ellison em 1967 - daí já ir no terceiro artigo a ela dedicado (e ainda falta um). Já aqui falei das contribuições de autores como Philip K. Dick, Robert Silverberg, Philip José Farmer, Brian Aldiss, Poul Anderson, Theodore Sturgeon, John Sladek e J.G. Ballard; hoje, dedicarei as próximas linhas a algumas das melhores peças da antologia, saídas da pena (ou da máquina de escrever) de John Brunner, Keith Laumer, Norman Spinrad e Samuel R. Delany.

Judas, de John Brunner: Se tivesse lido Judas sem o enquadramento temático e temporal que Dangerous Visions lhe confere, diria que se trataria de um conto situado em pleno movimento cyberpunk, algures nos anos 80 - e não seria difícil imaginar o cenário descrito pelo britânico como algures na vasta sprawl de Gibson. Sabendo que Brunner o escreveu em 1967 torna-o ainda mais interessante pela forma como antecipa uma certa atmosfera sombria daquele movimento numa alegoria religiosa tão poderosa como irónica. Judas coloca-nos numa igreja futurista onde a máquina se tornou objecto de culto e a Inteligência Artificial ascendeu à divindade - criada pelo Homem à sua exacta imagem e semelhança. Mas quando a máquina se torna divina, qual é o papel que resta ao Homem? De um ponto de vista pessoal, este era um dos contos que mais curiosidade me despertava em toda a antologia, devido à minha leitura da obra-prima de Brunner, Stand on Zanzibar - e a leitura não me desiludiu. Bem pelo contrário: ainda que não se revele uma das visões mais perigosas da antologia, Judas é provavelmente um dos seus melhores contos.

Test to Destruction, de Keith Laumer: Começa como uma narrativa de características noir muito vincadas para se revelar num confronto de titãs. John Mallory, um revolucionário que tenta derrubar um regime opressivo, vê a sua mente servir como campo de batalha entre duas forças de um poder incomensurável: a sede de poder dos seres humanos revelada no seu engenho para a tortura e o poder de uma enigmática raça alienígena, determinada a testar a Humanidade até às últimas consequências para determinar se constitui uma ameaça. Mas tolerará tal confronto outro vencedor? Com uma estrutura narrativa fragmentada em pequenos capítulos com vários pontos de vista distintos, Test to Destruction é a todos os níveis um conto notável - começa com uma cena de perseguição tão viva que quase ganha um carácter cinematográfico, à qual se sucede um confronto prodigioso entre dois inimigos que não se conhecem que culmina de forma... inesperada (para alguém, certamente). Mas mais do que um conto notável, Test to Destruction é uma fascinante reflexão de Keith Laumer sobre a natureza do poder e sobre como a mais benigna das intenções humanas projecta sempre uma sombra considerável.

Carcinoma Angels, de Norman Spinrad: Como o título indica, Carcinoma Angels é uma história sobre cancro. Na introdução, Ellison descreve-a como a funny cancer story - e, de facto, o conto de Norman Spinrad é uma história provocadora, irónica e bastante divertida sobre o cancro. E é exactamente neste ponto de reside a dangerous vision de Spinrad - ao contrário de outros temas arriscados e polémicos que a antologia exibe, o tema do cancro é notório por ser, em 1967, um "não-tema", algo de que ninguém falava. Como o próprio refere no posfácio: Proeminent Public Personalities, alone, escape from its ravages, as any newspaper obituary column will tell you: "dying after a long, lingering illness" or "passing away from natural causes". Algo que deverá ser familiar a todos: apesar de já se falar de forma mais aberta do tema, só há pouco tempo a comunicação social se começou a libertar do espartilho da "doença prolongada". Com um trocadilho assombroso no título (percebê-lo no texto fez-me soltar uma sonora gargalhada), Carcinoma Angels é uma história fascinante sobre a ambição e o desejo de controlo sobre algo que, para todos os efeitos, está fora do nosso controlo. E tal como o anterior, é também um conto muito rico do ponto de vista visual, com metáforas visuais muito bem conseguidas sobre um tema difícil de descrever numa perspectiva narrativa.

Aye, and Gomorrah..., de Samuel R. Delany: A Delany coube encerrar a antologia com uma história que usa como premissa para uma reflexão mais profunda um detalhe esquecido com alguma frequência na ficção científica "espacial". Num futuro tão intrigante como perverso, os astronautas que exploram o Sistema Solar e trabalham no espaço são seleccionados ainda muito jovens e castrados para evitar os efeitos nefastos da radiação espacial nos gâmetas - condenando-os à esterilidade e a uma androginia pré-púbere. Tudo o que é invulgar, porém, é motivo de curiosidade, e estes astronautas assexuais alimentam o fascínio sexual de alguns indivíduos, e a eles se entregam em troca de dinheiro e de diversão - mas serão o dinheiro e a diversão os verdadeiros motivos dessa entrega? Em Aye, and Gomorrah, Delany explora temas como a perda, as ligações humanas, o desejo sexual, o preconceito e a perversão - e fá-lo numa narrativa elaborada e algo melancólica, descrita pelo olhar subjectivo de um invulgar protagonista. Este conto foi um dos vários vencedores de Dangerous Visions ao conquistar o Prémio Nébula de 1967 na categoria de "Melhor Conto".

7 comentários:

André Nóbrega disse...

João, não confundiste o Roger Zelazny (no título) com o Samuel Ray Delany (o autor do último conto)?
Fora o preciosismo, continuo a ler afincadamente estes teus comentários a uma antologia que já me convenceste a não deixar de ler.

João Campos disse...

Sim, troquei - obrigado pelo reparo, vou já corrigir. Apesar de também recomendar muito o conto do Zelazny, que recria em ficção científica duas imagens fascinantes.

André Nóbrega disse...

Tenho o Great Book of Amber e planeio ler o Lord of Light dele, já vou previamente convencido. Já o Delany, acho que nem li nem tenho nada dele. Vou ter que investigar. Ou então esperar por arranjar o Dangerous Visions :D

João Campos disse...

No Dangerous Visions tens apenas um conto do Delany - interessante, sim, mas apenas um conto. Dos livros mais conhecidos dele, já ouvi falar muito bem e muito mal. Um dia destes desempato a coisa.

O Lord of Light do Zelazny deve mesmo ser lido. Que livro formidável.

Barreiros disse...

O delany tem coisas excelentes...bom...tinha..antes de sair do armário...depois disso nunca tive muita paciência para a pornografia gay hard. Mas todos os livros que ele escreveu antes do Dalgreen valem a pena ser lidos. Recomendo vivamente o NOVA o EINSTEIN INTERSECTION, o FALL OF THE TOWERS, o TRITON, o BABEL17 (que saiu em português com uma tradução horrível do Saló, THE JEWELS OF APTOR, STARS IN MY POCKET LIKE GRAINS OF SAND (cautela, sexo gay com baratas alienígenas), e os contos. A série de fantasia NEVERONYA, já não pachorra para os enrabamentos entre o herói a la Conan e o seu escravo libertado.

Barreiros disse...

Quanto ao Zelazny, a NESFA press publicou em seis volumes TODOS os contos dele. Numa edição lindíssima. Absolutamente a não perder.

João Campos disse...

Heh. Alguns dos livros do Delany que o Barreiros recomenda já os tenho na lista de compras futuras, se o Gaspar não ma vier roubar também. Quanto a essa edição do Zelazny, não conhecia - poderá ser uma boa compra quando acabar os volumes dos contos do Philip K. Dick... :)

(como sempre, obrigado pelas sugestões!)