22 de fevereiro de 2013

Tolkien: Construtor de Mundos (3): O encantamento, as ilustrações e a criação de mundos ficcionais

De regresso ao seminário Tolkien: Construtor de Mundos, da passada Terça-feira na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Às duas sessões ontem mencionadas seguiram-se três, no feminino e com temas curiosos: a primeira, com Iolanda Zorro (da FLUL), sobre o "encantamento", as fairy stories como Tolkien as definia e a suspensão da descrença; a segunda, de Inês Meira Araújo (também da FLUL), dedicada ào Tolkien ilustrado; e a terceira, a concluir a manhã, com Maria do Rosário Monteiro, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e com vários trabalhos académicos dedicados à obra de Tolkien. Comecemos, então, pelo início.

Com uma sessão intitulada O encantamento do Homem: a sub-criação em J.R.R. Tolkien, Iolanda Zorro recuperou o célebre ensaio On Fairy Stories de Tolkien para dissertar sobre as diferenças entre mundos primários e mundos secundários. A Terra Média faz assim parte de um "mundo secundário como encantamento", no qual o leitor entra ao aceitar as regras que lhe estão implícitas - o célebre mecanismo de "suspensão da descrença". Esse mecanismo é fundamental para qualquer mundo secundário - a racionalização sobre a leitura quebra a sensação de verosimilhança e retira o leitor da narrativa. Nesse sentido, a fantasia de Tolkien pode ser considerada escapista, mas jamais no sentido que é habitualmente atribuído ao adjectivo, sobretudo no contexto dos géneros literários (o "estigma da literatura fantástica" a que aludiu). E a criação mitológica que lhe dá origem assenta numa lógica dialética de perguntas e respostas (a criação de The Lord of the Rings em simultâneo com The Silmarillion), estando orientada para a eucatástrofe (e não para mecanismos de deus ex machina), e com uma ligação nostálgica ao mundo primário (constituindo assim um refúgio).

Já Inês Meira Araújo optou para abordar a ilustração no universo de Tolkien numa interessante e divertida palestra intitulada Os desenhadores de Tolkien. É uma pena não poder apresentar aqui as várias ilustrações daquele imaginário - algumas chegaram às capas de edições em vários países, outras foram vetadas pelo próprio autor. Tolkien chegou mesmo a produzir algumas ilustrações, mas não se via como um profissional nessa área. O que, porém, não o impediu de ser extremamente exigente: afastou artistas americanos por um estilo que considerava "uma aproximação à Disney", e teceu duras críticas a muitas capas de que não gostou. Em 1963, Maurice Sendak (mais conhecido pelo clássico Where the Wild Things Are) chegou a produzir algumas ilustrações para uma edição ilustrada comemorativa, mas essas ilustrações não chegaram a ser publicadas. Dos vários ilustradores com quem trabalhou, Pauline Baynes, sua amiga pessoal, terá porventura sido uma das profissionais que mais se aproximou da sua visão; os mais conhecidos, porém, são Alan Lee e John Howe, que nunca trabalharam directamente com Tolkien mas que ilustraram diversas edições dos vários livros dedicados ao seu universo fantástico - e que contribuíram para a visão artística dos filmes de Peter Jackson.

A manhã terminou com a professora Maria do Rosário Monteiro, com vários trabalhos académicos dedicados à obra de Tolkien (e que praticamente dispensa apresentações). Na sua sessão, intitulada Tolkien e a criação de mundos ficcionais possíveis, começou por considerar "um erro, uma abordagem simplista" a definição de literatura fantástica como escapista ("toda a literatura é escapista, mesmo a pós-moderna", disse a dada altura), e respondeu com muito humor a algumas questões deixadas no ar nos debates anteriores (sobretudo no que diz respeito a Galadriel). Esclarecidas estas questões, deu início a uma fascinante dissertação sobre a criação do universo ficcional fantástico de Tolkien, das influências que absorveu e que exibiu na sua obra (como as cristãs: Tolkien, como se sabe, era católico convicto) à importância da sua formação como filólogo e da sua paixão pelo estudo e pela criação de línguas para a génese da sua ficção (Tolkien considerava a língua "essencial para definir a cultura"). Traçando as origens da Terra Média num "poema publicado em 1915" (The Voyage of Earendël the Evening Star), falou do seu trabalho de uma vida em The Silmarillion e na forma como não concebeu discrepâncias narrativas entre esta obra inacabada e The Lord of the Rings (segundo o que disse, até nas fases da lua as duas obras estão em sintonia). A criação deste universo prendeu-se com uma ambição de "escrever uma mitologia para Inglaterra", nação desprovida de algo que se pudesse caracterizar como tal (as lendas Arturianas não são anglo-saxónicas), que Tolkien desenvolveu com um ritmo narrativo rebuscado a Aristóteles e às tragédias clássicas. E é um universo "masculino" (reminiscências da guerra em que combateu, porventura), onde as personagens femininas nunca são desenvolvidas - Arwen é, para todos os efeitos, uma donzela, e Éowyn funciona um pouco como "um mito reformulado das Amazonas", mas acaba por se revelar "uma personagem feminina falhada, pois nunca consegue ser perfeita" nos objectivos a que se propõe. "Mas também Frodo" (protagonista), disse, "é um falhado". 

Isto, note-se, é apenas um resumo um tanto ou quanto mal amanhado de uma excelente palestra sobre Tolkien, com várias ideias interessantes que me levaram a prestar mais atenção ao que dizia do que às notas que anotava no meu caderno. Amanhã, escreverei sobre as sessões que decorreram durante a tarde. 

Imagem: The Dark Tower, de Alan Lee


2 comentários:

ruisdb disse...

Acho que estás a fazer, nestes posts, uma bela síntese do seminário. Não sei se na FLUL têm por hábito publicar estas conferências; seria um belo serviço.
Eu fiquei algo perplexo com a última conf. da manhã, a de Maria do Rosário Monteiro. Percebe-se que a senhora percebe de Tolkien, tem uma boa chave analítica. A ideia do tripé analítico era bastante boa. Mas a conferência em si, pareceu-me... pouco cuidada. Acho que apostou em algumas frases bombásticas (as piadas ao Gaspar, "não posso é com S. Paulo"... )e descurou a sistematização das ideias. E fiquei com pena; possivelmente faço uma leitura de Tolkien diferente da dela mas acho que ela seria capaz de enriquecer-nos a todos se tivesse preparado melhor a intervenção (ou se ela fosse mais estruturada, em função do tempo que tinha.

João Campos disse...

Obrigado! Se bem me lembro, o professor José Varandas disse que iam tentar publicar coisas sobre as conferências.

Eu não fiquei perplexo com a conferência da professora Maria do Rosário Monteiro. Sim, podia ter estruturado melhor a apresentação; mas entre isso e os oradores que têm tudo tão estruturado ao ponto de não tirarem os olhos da folha de papel (neste nem foi demasiado mau, mas no "Mensageiros das Estrelas" foi uma catástrofe), prefiro este formato mais improvisado, mais livre e mais bem humorado. Já tinha tido a oportunidade de a ouvir antes (a falar sobre Tolkien e sobre Le Guin), e é sempre uma maravilha ouvi-la.