29 de novembro de 2012

Dan Wells: Entrevista no Fórum Fantástico 2012

Dan Wells, autor da trilogia de John Cleaver (I Am Not a Serial Killer (2009), Mr. Monster (2010) e  I Don't Want to Kill You (2011)), Hollow City (2012) e Partials (2012),  foi o convidado especial da edição deste ano do Fórum Fantástico. Não podendo deixar passar a ocasião, fiz-lhe uma curta entrevista no Sábado, a qual aqui reproduzo na íntegra:

Viagem a Andrómeda: Foi ainda durante a infância que descobriu que queria vir a ser escritor? Como se deu essa descoberta?
Dan Wells: Sim. Na verdade, quando eu estava no segundo ano – teria talvez oito anos – disse aos meus pais que queria ser escritor. Isso deveu-se, em grande parte, ao facto de os meus pais serem leitores ávidos – estavam sempre a ler, e eu cresci a ler. Se tivesse de indicar um livro que me inspirou mais do que qualquer outra coisa, a escolha seria os Poemas de Christopher Robin, de A. A. Milne, o autor de Winnie the Pooh. Nunca me interessei muito pelo Winnie the Pooh, mas adorava os poemas de Milne, e ainda os leio hoje em dia. O que me fascinou foi ver que ele não se limitava a escrever palavras, ele brincava com palavras, e via-se que ele se divertia imenso a fazê-lo. Foi isso que despertou o meu interesse, e me fez descobrir que era exactamente aquilo que queria fazer. Para além disso, o meu pai era um grande fã de The Lord of the Rings e de The Hobbit, livros que leu a mim e ao meu irmão quando éramos miúdos. Por isso comecei logo cedo a entrar na fantasia, e mais tarde na ficção científica. Costumava ir à biblioteca local quase todos os dias e lia tudo o que lá havia. Cresci a ler ficção fantástica, e desde esses tempos da minha infância que o meu sonho foi escrevê-la.

VA: Quais eram os seus autores preferidos, e quais as referências literárias mais importantes desse tempo?
DW: A. A. Milne, como já disse, mas a partir do momento em que entrei na literatura fantástica o meu autor preferido passou a ser o Fred Saberhagen, que escreveu fantasia e ficção científica – e também horror. A sua principal série de fantasia começou com The Empire of the East, e continuou com The First Book of Swords, e por aí em diante. Era sobre espadas mágicas e o que elas faziam – e eu adorava essas histórias. A sua série de ficção científica intitulava-se The Berserkers, e esta série foi das primeiras séries relevantes a abordar a ideia de robots assassinos. Ele foi um dos primeiros a abordar o conceito da Máquina de Von Neumann: robots que se podem auto-reproduzir, e que nos querem matar a todos. Hoje em dia esse tema está mais do que batido, foi trabalhado em The Matrix e em muitas outras obras, mas Saberhagen fê-lo antes de muita gente. Há dezenas de livros e de contos sobre os Berserkers. Eu costumava ler um num dia, para ir logo à biblioteca buscar outro. O facto de que ele os escreveu, e de que ele escreveu em ambos os géneros entusiasmou-me – foi assim que fiquei a saber que, se me tornasse num escritor, não teria de escolher um dos géneros. Não teria de dizer “vou apenas escrever mistérios”, ou “vou apenas escrever ficção científica” – poderia escrever tudo, pois isso era o que Saberhagen fazia. Felizmente, há mais ou menos dez anos, quando comecei a ir às convenções para tentar conhecer os editores e para começar a escrever a sério, tive a sorte de o conhecer, de o cumprimentar e de lhe dizer que ele era um dos principais motivos pelos quais eu me tinha tornado num escritor. Essa foi uma das melhores experiências por que passei.


VA: As suas influências são essencialmente literárias, ou houve outras obras noutros formatos que tenham influenciado a sua escrita? Por exemplo, um filme, uma série televisiva, um álbum de banda desenhada?
DW: Uma das coisas que em criança mais gostava de ler era comédia. Lia, por exemplo, Douglas Adamas e a série The Hitchhiker’s Guide. Mas também adorava a comédia dos Monty Python e de The Muppet Show ["Os Marretas"]. Aliás, mais do que qualquer outra coisa, The Muppet Show ensinou-me a dizer uma piada, a criar uma situação e a levá-la para onde o público menos espera; ensinaram-me a ser bizarro e ao mesmo tempo muito sério; e ensinaram-me a dizer algo importante apesar de o fazer com uma engraçada marioneta em forma de sapo. The Muppet Show foi uma grande influência para mim. No que diz respeito ao cinema, o meu filme preferido é Jaws – o que pode querer dizer que iria acabar a escrever horror. Há em Jaws uma história muito bem contada e personagens muito bem desenvolvidas – vamos lá ver, é um filme sobre um tubarão que come pessoas, e mesmo assim há tempo para abrandar e fazer-nos interessar por aquelas pessoas, e acreditar nelas. Por isso, sempre que o tubarão come alguém nós sentimos pena dessa pessoa, sentimos a tensão desse momento. É isso que faz o horror funcionar. Aliás, é isso que faz qualquer género funcionar – basta fazer com que o público goste das personagens, que a partir daí qualquer coisa que lhes seja feita vai causar impacto. O público estará tenso por elas, feliz por elas, apaixonado por elas. Foi com Jaws que aprendi isso.

VA: Quanto a John Cleaver – ele é um sociopata adolescente que tenta controlar os seus impulsos até ao momento em que um serial killer aparece na cidade e ele decide investiga-lo. Como é que se constrói uma personagem como esta? Como é que se leva o leitor a gostar de uma personagem como ele, e a ligar-se a ele, quando ele à primeira vista seria detestável?
DW: Esse foi, desde o primeiro momento, o grande obstáculo na escrita deste livro e desta série. Por definição, um sociopata não se consegue ligar emocionalmente a outras pessoas – logo, como pode o leitor ligar-se a ele? Recorri a vários truques, como torná-lo divertido – fui buscar todas as influências de The Muppet Show e introduzi muitas piadas – ele enfrenta inúmeras situações através do humor. As pessoas tendem a gostar de quem as faz rir. Esse foi um dos truques; mas mais do que isso, o verdadeiro truque foi deixar o leitor conhecê-lo. O livro é todo na primeira pessoa – aquilo que o leitor vê é aquilo que o John Cleaver vê. O leitor começa assim a conhecê-lo bem, e a ver que ele está mesmo a tentar fazer algo que o leitor possa apreciar. Não que o John Cleaver se preocupe se alguém vive ou morre – mas ele sabe que é suposto preocupar-se, e tenta por todos os meios ser a pessoa que o leitor espera que ele seja. Isso ajuda o leitor a ligar-se a ele e a torcer por ele. A maior ameaça no livro não reside no facto de ele sobreviver ou morrer, mas antes se ele vai ceder ou não – se ele vai permanecer bom ou tornar-se mau. É esse o fio condutor que vai guiando e prendendo o leitor.

VA: De onde surgiu a inspiração para esta persongem? O humor pode vir dos “Marretas”, mas o seu lado mais sombrio, de sociopata, terá certamente outras influências.
DW: Cresci em Salt Lake City, no estado do Utah. Não é um local muito conhecido, mas foi um dos principais sítios onde Ted Bundy, um dos mais famosos assassinos em série de sempre, matou as suas vítimas. Isto foi algo que sempre me espantou, pois Salt Lake City é uma cidade tão pequena e tão pacata – e apesar disso, nela viveu um monstro tão horrível como ele. Comecei a estudar o tema dos assassinos em série, e fiquei fascinado – como muita gente, aliás – por John Wayne Gacy, um serial killer que costumava vestir-se de palhaço para as festas dos seus vizinhos. Não que ele matasse pessoas vestido de palhaço, longe disso, mas a ideia de que alguém era simpático, um bom vizinho, que se vestia de palhaço porque gostava de fazer as crianças rir, e ao mesmo tempo podia matar uma pessoa, cortá-la aos bocados e enterrá-la debaixo do seu soalho – como era possível estes aspectos tão diferentes existirem dentro da mesma pessoa? Como poderia uma pessoa ser ambas ao mesmo tempo? Essa é a inspiração para o John Cleaver – essa tensão entre ser uma boa pessoa e ser uma má pessoa, e ser as duas ao mesmo tempo. Queria escrever a história de uma pessoa a tentar decidir qual delas seria – se se tornaria no tipo simpático de quem os vizinhos gosta, ou no tipo horrível que os persegue nas sombras. Foi daí que surgiu o livro.

VA: Com a publicação de Partials, deu início a uma nova série de ficção científica. Este livro, e esta série, toca em vários temas que são clássicos da ficção científica: o mundo pós-apocalíptico, os andróides, clones ou outra forma de inteligência semelhante a nós, a relação entre a Humanidade e o Outro. Como recombinou estes elementos de forma a fazer algo de novo com eles?
DW: Essa é uma pergunta complicada. [risos] Comecei a escrever Partials logo após ter começado a escrever um livro diferente, sobre tecnologia de clonagem que acabou por destruir o mundo. Já tinha escrito cerca de um terço desse livro quando me surgiu uma ideia para a parte seguinte: o que aconteceria após o mundo ser destruído? Coloquei o livro sobre a clonagem de lado, e dediquei-me a esta ideia – queria mesmo contar a história do que se seguiria. Estas histórias acabaram por não estar ligadas de todo – a história da clonagem não poderia fazer parte do mundo de Partials. Esta é uma história com ideias de engenharia genética, de pessoas artificiais… o título, Partials, vem das pessoas artificiais que são construídas – pessoas parciais. Não são pessoas de facto.

Esse é um problema que existe hoje em praticamente todos os países do mundo: há sempre alguém que olha para outro ser humano e pensa: ele não é tão bom como eu – não é tão real como eu, não é tão importante como eu. Foi esse tipo de orgulho que levou à destruição do mundo. Sim, houve uma guerra de grandes proporções, e sim, houve uma praga terrível, mas o que de facto destruiu tudo foi uma pessoa olhar para outra e dizer: tu não contas; eu sou melhor do que tu; eu tenho mais direitos do que tu. Isto não é necessariamente uma ideia nova; muitos foram os escritores que já se dedicaram a ela, mesmo antes de existir ficção científica. Mas ao escrever esta história pós-apocalíptica com tudo isto em mente fez-me mudar a forma como a escrevia. Fez-me pensar muito mais nos personagens, e no significado das suas escolhas, ao invés de me dedicar apenas à acção, à ideia de destruir mais qualquer coisa. Talvez seja arrogante da minha parte dizer que esta história é diferente, que tem um significado mais profundo – mas não é isso que pretendo de todo dizer. Por tudo o que já disse, escrever esta história foi uma experiência muito pessoal, e é essa ligação pessoal que a diferencia. É diferente porque sou eu quem a escreveu, são os impulsos nervosos do meu cérebro a sair e a revelar-se, e toda a gente tem de ver o resultado. [risos]

VA: O segundo livro da série, Fragments, será publicado em Fevereiro. A série será uma trilogia, ou terá mais livros?
DW: A série será uma trilogia. Neste momento, estou ainda a definir o que será o terceiro. Sei desde o início como vai acabar. Há muito de Battlestar Galactica nesta série – toda aquela ideia dos Cylons. Uma coisa que sempre me chateou em Battlestar Galactica foi não terem sabido terminar bem a série. E dei por mim a pensar: já que vou fazer isto, vou fazer isto como deve ser, e não começarei sem ter a certeza de como vou acabar a história. Defini tudo isso, e certifiquei-me de que havia um início, algo a meio e um final. O resultado será uma trilogia. No entanto, à medido que tenho escrito, comecei a gostar mesmo muito deste mundo e das personagens, e comecei a notar muitas mais oportunidades do que tinha imaginado. Quero ter a certeza de que, ainda que esta história acabe, isso não signifique que este mundo esteja concluído; quero que ele permaneça, como se estivesse num baú de brinquedos, para que eu possa, se quiser, ir lá, abrir o baú e escrever mais.

VA: Sobre o podcast, Writing Excuses – de onde surgiu a ideia, e como se juntou este grupo?
DW: Neste momento, o grupo é composto por mim, pelo Howard Taylor, pelo Brandon Sanderson e pela Mary Robinette Kowal – e a Mary apenas entrou para o podcast no ano passado. Nos três anos que antecederam a entrada dela – se bem me lembro, andamos nisto há quatro – a equipa era constituída apenas pelo Brandon, pelo Howard e por mim. Eu e o Brandon conhecemo-nos na universidade, há 15 anos, quando trabalhávamos na revista de ficção científica de uma pequena editora. Eu trabalhava na edição e ele na produção. Não me lembro ao certo de como nos conhecemos – as duas partes da revista juntaram-se, começámos a falar, e apercebemo-nos de que ambos estávamos a escrever livros e de que queríamos vir a publicar – enfim, apercebemo-nos de que ambos queríamos ser escritores. Formámos um grupo de escrita, e foi assim que nos conhecemos. Ele publicou o primeiro livro antes de mim, começou a frequentar mais convenções e a conhecer outras pessoas, e descobriu o Howard, que vivia na nossa cidade. Nunca nos tínhamos cruzado.

A ideia do podcast veio do Brandon, e quem lha deu foi o irmão. Ele é programador informático, e assistiu a algumas aulas de “online media” quando os podcasts começaram a crescer em popularidade. Nessa altura ele disse ao Brandon que ele devia fazer um podcast, que era algo muito interessante – e o Brandon pensou nisso durante algum tempo. A ideia era de facto boa, mas ele queria ter uma boa razão para avançar. Acabou por se fixar nesta ideia de dar conselhos de escrita – na prática, um workshop que transmitimos através da Internet. Para o fazer, falou com o Howard e comigo – apenas porque nos conhecia. Na altura, eu ainda não tinha sequer publicado o meu primeiro livro. O Brandon é quem leva as coisas para a frente – é muito analítico, a sua mente funciona de forma quase matemática. O Howard é o outro lado disso, a outra opinião. E eu digo piadas. Esse foi literalmente o motivo pelo qual fui convidado para o podcast – ele achou que eu tinha piada. Começámos a partir daí, e publiquei o meu livro alguns meses mais tarde.

Mais tarde, convidámos a Mary. Sabíamos desde o início de que precisávamos de um elemento do sexo feminino no podcast, mas ainda não tínhamos conhecido uma mulher que encaixasse no programa – que pensasse na escrita da mesma forma que nós. Com isto não quero dizer que ela tivesse de escrever como nós, mas teria de ter o mesmo tipo de consciência sobre a sua escrita, sobre os motivos que a levavam a escrever de determinada forma. Muitos autores não fazem ideia por que motivo escrevem como escrevem – e não há mal nenhum nisso. Mas para o podcast precisávamos de alguém que reflectisse sobre os seus processos e fosse capaz de os explicar a outras pessoas. A Mary é brilhante – tivemo-la como convidada em alguns dos nossos melhores episódios. Quando chegou a altura de assumirmos que precisávamos de uma colaboradora no podcast, percebemos que precisávamos de alguém como a Mary. Procurámos durante alguns meses até que desistimos de procurar e convidámo-la. E tem sido excelente.

VA: Na sua pequena sessão no primeiro dia do Fórum Fantástico, mencionou a disciplina como uma das mais importantes qualidades para um autor. Que outras qualidades destacaria como muito importantes para alguém que pretenda ser escritor?
DW: Destacaria três aspectos. Em primeiro lugar, a disciplina, claro: é necessário obrigares-te a escrever, mesmo quando não queres escrever. Tens de conseguir acordar de manhã e dizer: vou sentar-me em frente a este computador e fazer o que tenho a fazer. És o teu próprio chefe – ninguém o vai fazer por ti. Em segundo lugar, tens de gostar mesmo de o fazer. Não te conseguirás obrigar a fazê-lo se fazê-lo não for aquilo de que realmente gostas. Esta carreira, esta indústria, não te vão tornar rico nem te vão proporcionar grandes recompensas materiais – mas se gostares de escrever, isso é o que irás fazer de qualquer forma. Se eu não fosse um escritor profissional, continuaria a escrever no meu tempo livre, como um hobby, porque é aquilo que adoro fazer – e se gostares realmente de o fazer, isso vai notar-se na escrita, e os leitores vão gostar também. Em terceiro lugar, para concluir: tens de ter uma pele muito rija. Tens de saber aceitar as críticas, sem te descontrolares quando alguém não gosta do teu livro. Se alguém escreve uma resenha negativa, se alguém não gosta das tuas personagens, se alguém gosta mais de outro livro, aquilo que tens a fazer é seguir em frente. Tal como disse, tens de gostar mesmo de escrever, e esse tem de ser o único motivo pelo qual o fazes – não porque queres dinheiro, fama ou elogios.

2 comentários:

Mag disse...

O Dan Wells é um excelente comunicador e as suas intervenções no Fórum Fantástico foram sempre divertidas e interessantes. Só tive pena de não haver mais gente a pedir-lhe autógrafos. Confesso que fiquei bastante interessada na trilogia "john Cleaver" e mesmo em "Partials", mas pretendo arranjar isso em inglês, como é óbvio.

Nota negativa para a Editora do senhor em Portugal, não só deviam ter aparecido, como também deviam ter promovido e divulgado a vinda do Dan Wells ao nosso país de forma mais evidente.

João Campos disse...

Sem dúvida que é um excelente comunicador - enfim, é americano. Não quero de forma alguma perpetuar o estereótipo, mas regra geral os americanos são muito bons a falar em público. Dan Wells não foi excepção.