30 de outubro de 2012

A ficção científica e o cinema: Minority Report

Não há outro autor de ficção científica cuja obra tenha sido - e seja - tão adaptada ao cinema como Philip K. Dick. Vários foram os seus contos e romances que ganharam vida no grande ecrã - algumas com grande sucesso, outras nem por isso. Por (ainda) não ter lido o conto, não consigo dizer se Minority Report (2002), a adaptação de Steven Spielberg do conto The Minority Report (escrito originalmente em 1956 e publicado na revista Fantastic Universe), está fiel à obra original; enquanto filme, porém, o resultado foi globalmente positivo, apesar do argumento algo nebuloso.

A premissa de Minority Report é interessante: em 2054, um projecto experimental denominado "Precrime" erradicou os crimes de homicídio de Washington, D.C.. Este feito deve-se a três humanos mutantes - os precogs - com o dom da premonição, capazes de prever com exactidão a ocorrência de um homicídio - e de accionar a resposta adequada da parte das forças policiais para impedir que esse homicídio seja de facto executado. Os assassinos são assim presos antes mesmo de cometerem o crime pelo qual seriam condenados, o que se não só previne aqueles crimes como constitui um efeito dissuasor. Criada e dirigida por Lamar Burgess (Max von Sydow), a unidade "Precrime" tem como líder operacional John Anderton (Tom Cruise), um ex-polícia viciado em drogas desde o trágico desaparecimento do seu filho Sean e do subsequente divórcio da sua (ex)mulher, Lara (Kathryn Morris). Anderton acredita de forma absoluta no sistema que representa, movido pelo desejo de evitar que mais ninguém passe por aquilo que passou. No entanto, durante a auditoria do agente do Departamento de Justiça Danny Witwer (Colin Farrell), Anderton repara numa curiosa memória preservada por uma das precogs, Agatha (Samantha Morton); e, pouco depois, o sistema prevê que Anderton irá assassinar um homem que desconhece.

Ciente de que alguém lhe montou uma armadilha, Anderton coloca-se imediatamente em fuga - uma tarefa particularmente difícil numa sociedade futurista marcada pela hiper-viligância e pela perseguição que lhe é movida não só pela sua unidade, que o conhece bem, como também por Witwer. É a partir deste ponto que a premissa do filme ganha consistência, com Anderton em fuga para tentar provar a sua inocência num crime que não cometeu nem consegue imaginar como poderia cometer. Esta sua cruzada leva-o a demonstrar a falha fundamental de todo o sistema do "Precrime", e a questionar a justiça que é feita num sistema que assenta num determinísmo falível, e não em livre-arbítrio (este é, para todos os efeitos, o tema principal do filme).

Esta premissa é muito bem executada no final - e a última meia-hora de filme reserva twists suficientes para surpreender mesmo os mais atentos. No entanto, o argumento tem, também ele, uma falha fundamental que coloca em causa a sua lógica interna: a impossibilidade da cilada feita a Anderton por esta e a premonição serem interdependentes. Ou seja: o que move Anderton para o local onde supostamente irá cometer um homicídio é a premonição de que irá cometer esse homicídio; sem esse ponto de partida, jamais Anderton se veria naquelas circunstâncias. É certo que apenas o conhecimento da premonição dá ao potencial homicida a possibilidade de escolher não cometer o crime - mas, neste caso, mais do que abrir essa possibilidade, a premonição é, ela mesma, a fundação do próprio crime (uma self-fulfilling prophecy, portanto). É difícil, assim, imaginar como poderia a armadilha ser preparada naqueles moldes sem a possibilidade de "plantar" a premonição nos precogs.

Apesar desta incongruência narrativa, Steven Spielberg conseguiu desenvolver um thriller de acção interessante, com um ritmo irrepreensível - mal se notam as mais de duas horas de duração do filme. Do ponto de vista visual, Minority Report impressiona, com a sua cidade futurista a contrastar com o submundo arruinado do sprawl (alusão a Gibson), com as auto-estradas automatizadas, a publicidade omnipresente alimentada por um sistema de vigilância com identificação de retina que lhe confere uma quase-omnisciência. As vistosas interfaces tácteis utilizadas pela equipa do "Precrime" tornaram-se particularmente icónicas, e apesar dos recentes - e vertiginosos - progressos tecnológicos nessa área, ainda estamos longe de algo com aquele estilo.

Minority Report é um filme de ficção científica bastante sólido - as suas fragilidades narrativas, ainda que evidentes, não retiram interesse à premissa nem roubam pertinência às questões e aos dilemas que o enredo suscita. Não será porventura o melhor filme baseado ou inspirado na obra de Philip K. Dick, mas não desilude, e tem força suficiente não só para proporcionar cerca de duas horas e meia de óptimo entretenimento, como para suscitar muitas mais horas de discussão acerca das questões levantadas e da verosimilhança da premissa. O que, diga-se de passagem, já é bastante bom. 7.2/10


Minority Report (2002)
Realizado por Steven Spielberg
Com Tom Cruise, Colin Farrell, Max Von Sydow, Samantha Morton, Kathryn Morris e Peter Stormare
145 minutos 

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