17 de agosto de 2012

O Futuro à Janela

Quis a sorte que a minha primeira leitura de ficção científica portuguesa fosse O Futuro à Janela (1991), de Luís Filipe Silva. Aqui, a palavra "sorte" revela-se particularmente adequada, dado o acaso que me levou a encontrar este livro, perdido entre centenas de volumes num alfarrabista de Lisboa. A antiga colecção de ficção científica da Caminho foi, como se sabe, extinta (e consta que literalmente destruída), pelo que encontrar alguns títulos daquele tempo não muito distante se pode revelar algo difícil. Neste caso concreto, O Futuro à Janela pode ser lido em formato digital aqui (recomendo a quem não conseguir uma edição em papel), com um prefácio do autor exclusivo para a versão digital. Este prefácio é muito interessante na sua recordação de um outro tempo no qual se escrevia ficção científica em Portugal, apesar das dificuldades que o género sempre enfrentou.

Distinguido com o Prémio Caminho de Ficção Científica no ano da sua publicação, O Futuro à Janela é uma compilação de vários contos, apresentados de forma muito apropriada pela introdução "A Importância do Conto", que destaca a relevância e as principais vantagens deste formato tão ignorado no nosso país (e ao qual, admito, não tenho dado a devida atenção). Seguem-se onze contos (e um poema), todos bastante diferentes na forma e no tom. Como acontece em qualquer compilação ou antologia de ficção curta, os vários contos que compõem este livro não são uniformes na qualidade ou na impressão que deixam; diria, contudo, que em termos gerais introduzem conceitos muito interessantes, e gostaria muito de ver algumas ideias e premissas apresentadas num formato mais alargado (há material para isso). O Futuro à Janela revelou-se um excelente primeiro (mas não último) contacto com a ficção científica nacional. Mais do que isso, reforça a ideia de que todos ficámos a perder com a fraca prevalência do género na literatura portuguesa - que não terá certamente sido por falta de potencial.  

De forma sucinta, tentarei falar um pouco sobre cada um deles, pela ordem com que aparecem no livro.

"Dois estranhos, um destino" 
Este é um dos contos que gostaria de ver expandido para um romance de grande dimensão e alcance, dada a força da premissa sobre a qual constrói a sua narrativa. A história começa com Dom Henrique (o Navegador) a bronzear-se (mesmo), num futuro no qual é possível viajar no tempo e recuperar personalidades de pessoas há muito desaparecidas para as introduzir num clone perfeito. Foi exactamente isso que aconteceu ao Infante, que se prepara para conhecer o rei D. João II, trazido para o futuro pelo mesmo processo que o recuperou. A passagem inicial com D. Henrique rodeado por tecnologia impossível no seu tempo é excepcional pelo contraste, e a conversa que se segue com o rei faz querer ler mais sobre tão improváveis personagens em tão improvável tempo (fica a sugestão).

"Embaixadores da boa vontade, ou Contacto!" 
Numa palavra: hilariante. O tema do contacto com alienígenas que chegam à Terra - raramente com boas intenções - é bastante comum na ficção científica, mas é raro tal contacto ser feito, não com as grandes figuras políticas da época ou com um qualquer herói acidental, mas com as mais banais pessoas. Aprendi, entre outras coisas, que um rolo da massa pode ser bem mais perigoso que uma sofisticada arma laser

"Os poetas da rua"
Não é um conto, mas uma série de contos reduzidos e fragmentados, cada um com um protagonista sobre o qual se centra a história. Algumas premissas são interessantes (a de "Mister Machine", sobretudo), mas no geral estas micro-histórias não me cativaram, talvez pelo formato demasiado curto, talvez pelo afastamento de muitas delas da ficção científica.

"La Nausée II"
Um conto algo sombrio sobre a viragem do milénio, que em 1991 ainda era futuro e alvo de muitas especulações. Com o formato de um diário do protagonista, em contagem decrescente para o ano 2000, este conto retrata de forma muito interessante o sentimento de expectativa que viria a marcar os últimos anos do milénio que findou, e a vaga desilusão que se instalou após as doze badaladas. No fundo, nada muda. 

"O Fernando Pessoa electrónico"
Neste conto, Luís Filipe Silva regressa ao tema da recuperação de figuras históricas, mas desta vez em formato virtual. Como o título indica, a personagem recuperada foi a de Fernando Pessoa, e nesta curta narrativa a personalidade virtual do poeta é confrontada - pela enésima vez, aparentemente - por um estudante, mais interessando porém na natureza e na realidade do simulacro do poeta do que na obra por ele deixada. Uma premissa muito interessante, e à qual julgo que o formato de conto se adequa na perfeição.

"Pequenos prazeres inconfessáveis"
De longe, o melhor conto deste livro, "Pequenos prazeres inconfessáveis" é uma autêntica história de terror vivida por uma rapariga (anónima) às mãos do seu pai. Enigmático e cruel, erótico e perverso, tem todos os ingredientes para funcionar na perfeição: personagens interessantes, twists inesperados, e um mistério que só encontra solução nas últimas páginas. Formidável. 

"O jogo do gato e do rato"
Um conto com uma premissa curiosa, a qual só é compreendida na sua totalidade perto do final. Poderia ser interessante desenvolvê-la para horizontes um pouco mais vastos do que aqueles permitidos pelo estúdio de cinema onde se passa a acção, e onde a rodagem violenta é feita com criaturas verdadeiras e descartáveis. Ainda assim, funciona bastante bem enquanto narrativa curta, apesar de, pessoalmente, não o ter achado um dos contos mais cativantes deste conjunto.

"Série convergente"
Um conto de natureza (diria) experimental, que narra a história de uma paixão, uma traição e um homicídio através de uma cronologia fragmentada e irregular. Diria que vale mais pela forma invulgar do que pelo conteúdo.

"Também há Natal em Ganimedes"
Pelos vistos, há - e, mais importante do que a celebração do Natal concreto, é a memória de um tempo e de um lugar deixados há muito para trás, a manutenção de uma rotina que, se em termos teóricos faz pouco sentido, na prática revela-se como essencial para a aquela comunidade. É uma perspectiva original sobre as (clássicas) histórias da expansão e colonização do espaço, quando se perdem os elos de ligação com a Terra de origem. 

"A última tarde"
Um dos melhores contos do conjunto, aborda um tema que, até à data, poucas vezes vi abordado de forma realista na ficção científica: o amor perante os abismos das distâncias espaciais. Daria para muito mais do que as suas (curtinhas) cinco páginas. 

"Criança entre as ruínas"
O maior conto deste livro divide-se entre duas localizações distintas: a Terra devastada por uma invasão extraterrestre e a base espacial onde os últimos seres humanos procuram encontrar sobreviventes entre os escombros da civilização. É uma história tocante sobre os laços remotos que se estabelecem entre dois estranhos, e sobre a persistência nas condições mais difíceis (isto dito assim parece cliché, eu sei), num cenário pós-apocalíptico muito bem conseguido.

"Ala anima"
O Futuro à Janela termina - e muito bem - não com um conto mas com este original poema sobre a exploração espacial e a partida definitiva rumo ao desconhecido, com todos os obstáculos e perigos que este encerra. 

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