21 de junho de 2012

Ficção Científica: ciência em forma de ficção ou ficção com um cheirinho de ciência?


Este artigo do Ars Technica sobre os erros científicos em Prometheus gerou uma enorme e interessantíssima discussão na caixa de comentários (quando digo que o Ars Technica é o melhor portal de ciência, tecnologia e cultura geek, não é apenas pela excelente qualidade do jornalismo, mas também pela superlativa qualidade dos comentários). Em termos muito sucintos, o jornalista queixa-se da falta de rigor científico do filme, o que acabou por lhe estragar a experiência; nos comentários, as opiniões dos utilizadores dividiram-se, ramificaram-se e geraram conversas paralelas fascinantes. Facto #1: Prometheus tem de facto vários erros científicos. Facto #2: Se quisermos ser exaustivamente rigorosos, todos os filmes de ficção científica - e porventura todas as obras de ficção científica - incluem erros científicos. A pergunta que se impõe é: será o rigor científico fundamental para uma boa obra de ficção científica?

A minha resposta: Nim.

Resumindo a coisa ao essencial (e arriscando-me a fazer figura de Capitão Óbvio), é tudo uma questão de suspensão da descrença. Sem recorrer ao dicionário - e sabendo que se estiver a dizer um disparate alguém virá puxar-me as orelhas -, diria que a suspensão da descrença depende mais da verosimilhança do que da verdade - e existe uma diferença assinalável entre ambos os conceitos. Regra geral, no Fantástico não é necessário que tudo seja verdadeiro, ou mesmo teoricamente possível - é apenas necessário que tudo seja coerente com as regras previamente estabelecidas. Ou, dito de outra forma, é preciso que todos os elementos sejam verosímeis. Isto é evidente na Fantasia - caso contrário, Hobbits, feiticeiros e dragões estariam feitos ao proverbial bife. E é também evidente na Ficção Científica, ainda que neste género o escrutínio científico seja mais elevado. Sim, é espectacular ver o realismo de 2001: A Space Odyssey, com os interiores e os sapatos de velcro, com as estações espaciais em movimento de rotação e com a Discovery a demorar meses a chegar a Júpiter (e, atenção, mesmo 2001 tem erros científicos). Sim, é excelente ler as as consequências da dilatação temporal tal como Haldeman as descreveu em The Forever War ou Clarke em Childhood’s End. Isto, porém, e relembrando duas frases célebres do próprio Clarke, não torna necessariamente a tecnologia indistinguível da magia, nem tem forçosamente de atirar para o campo da Fantasia toda a ficção científica que opta por dar gravidade artificial às naves espaciais sem a explicar cientificamente. Sobretudo em cinema, por motivos óbvios (facilidade de filmar). Da mesma forma, não remete para a Fantasia toda a ficção científica espacial que recorre a algum expediente (collapsars, warp drives, wormholes, mass effect fields, farcasters, etc) para possibilitar viagens a velocidades superiores à da luz e ignorar os efeitos da dilatação temporal. Sim, houve (e há) autores que utilizam esses conceitos com um módico de rigor para enriquecer a sua narrativa - mas há outros que optam por ignorar esses aspectos e nem por isso a narrativa fica a perder.

No fundo, tudo depende da narrativa e dos seus próprios alicerces. É certo que há casos em que os erros e os disparates científicos são de tal ordem que até um leigo (como eu) se abstrai do filme e fica a meditar na coisa (veja-se, a título de exemplo - e de puro entretenimento - The Core, ou qualquer outro filme-catástrofe). Mas em muitos casos, aquilo que frequentemente se aponta como um erro científico é apenas uma conveniência narrativa, um plot device, se quiserem. No caso muito concreto de Prometheus, o que me incomodou - e destruiu de forma lenta e metódica a minha suspensão da descrença - foi a imbecilidade tremenda de praticamente todos os personagens (retirarem os capacetes, etc - já falei da coisa aqui). Não me incomodou especialmente a precisão - ou falta dela - de Vickers ao dizer a distância que a nave tinha percorrido para chegar àquele planeta, a composição atmosférica de LV-223 (afinal, space is big), ou mesmo o facto de a nave aparentemente ter gravidade própria e deslocar-se a velocidades superiores às da luz. Dito de outra forma - o que me abstraiu do filme não foi a inconsistência científica, mas a inconsistência narrativa e a débil (passe o eufemismo) caracterização das personagens. Coisa que não acontece em muitos outros filmes (como, por exemplo, em Alien). 

6 comentários:

Artur Coelho disse...

o nim resume bem a essência da questão. se um filme de fc for cientificamente correcto até à infinitésima partícula... temos um documentário. a fc é por natureza especulativa, projectando em futuros plausíveis as tendências de conhecimento das épocas em que se inserem.

por outro lado já li muito paper e livro de ciência pura, particularmente nas ciências sociais, que deixa muita fc empalidecida com o nível especulativo...

Rogério Ribeiro disse...

Concordo plenamente com a tua posição. É isso que tenho sempre defendido!

Só um aparte, para te rebentar a bolha, é que ao rever recentemente o Alien fiquei bastante incomodado pelo facto da criatura crescer de uma minhoca a um monstrengo em poucos minutos, com a óbvia diferença de biomassa... :P

Abraço,
Rogério

João Campos disse...

Artur,

… não vou tocar sequer na discussão sobre a "cientificidade" das "ciências sociais! :)

Não duvido. Mas julgo que a ficção cientifica nunca poderá ser especulativa como esses papers e livros que referes - um paper não tem de se preocupar com narrativas, personagens, etc. A ficção científica é, e muito bem, uma forma diferente de entrar nessas especulações. Para te dar um exemplo fora do género: a teoria objectivista de Ayn Rand, que sei que já conheces, poderia ter sido apresentada como a maioria dos textos filosóficos são: em forma de ensaios. Rand, no entanto, optou por apresentar as suas teses na forma de ficção - e o resultado foi alguns livros narrativamente interessantes e marcadamente doutrinários e ideológicos. O que, a meu ver é excelente: dificilmente teria paciência para ler um ensaio sobre o Objectivismo, mas li duas vezes o Atlas Shrugged. Da mesma forma, é mais fácil para mim compreender o conceito de dilatação temporal a ler o Haldeman ou o Clarke do que a consultar a Wikipedia ou o livro "Astrophysics for Dummies".

Pessoalmente, gosto muito de ver boa ciência na ficção científica - como vi em The Forever War ou em 2001: A Space Odyssey (apesar de alguns erros menores). O rigor científico pode dar detalhes muito interessantes. Mas, e a título de exemplo: Stargate era uma série muito interessante (a original, pelo menos), e em termos de ciência... enfim - o conceito é que era excelente. O mesmo poderia dizer do último livro que li, Hyperion - a ciência ali oscila entre a tentativa de rigor (dilatação temporal), os disparates conscientes (farcasters) e a pura fantasia (Shrike). No entanto, é um dos melhores livros que já li em termos de personagens, de worldbuilding e de enredo.

João Campos disse...

Rogério,

eu percebo, e em parte concordo. No entanto, esse crescimento invulgar não é novidade na série: em Alien, o xenomorph cresce de um bicharão do tamanho do Jones (o gato) para um calmeirão de dois metros de altura em poucas horas - e, que me lembre, não comeu ninguém (colocou toda a gente naquela mistela pegajosa - que também nunca foi explicada).

Claro que em Alien estamos demasiado acabaçados e imersos naquele mundo claustrofóbico para reparar na velocidade de crescimento do xenomorph - quando o vemos, limitamo-nos a dar um salto no sofá. Já em Prometheus, os disparates são tantos que é difícil não reparar em mais um..!

Naturalmente, podemos partir do princípio de que as nossas regras não se aplicam a eles. Se estamos preparados para aceitar como verosímil uma criatura com um ácido poderosíssimo como sangue, então talvez o seu crescimento explosivo não seja assim tão estranho.

Abraço

Loot disse...

Em relação ao Alien, acho que o Ridley Scott ia mete-lo a usar o corpo dos que matou para criar os ovos. Essa cena foi cortada e depois o Cameron mudou as regras, uma vez que nunca tinham sido definidas. Penso eu de que...

Quanto ao assunto no post, acho muito interessante e concordo contigo. O que não pode falhar, mesmo em ficção, é a coerência do mundo criado. De resto é o equilíbrio, falamos de ficção obviamente mas também não vamos aparvalhar.

Gosto mais das conversas que o Prometheus tem gerado do que propriamente do filme em si, apesar de ter os seus momentos.


Abraço

João Campos disse...

Ao menos o filme teve esse mérito - suscitou imensos tópicos de conversa e de debate. É pena que não tenha conseguido muito mais do que isso.

Abraço